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Mostrando postagens de 2007

Fazendo o balanço...

Em 2007, eu... Fiz novos amigos. Fiz o que pude pra guardar um tempinho para os velhos amigos, tão queridos... mas nem sempre consegui. Trabalhei bastante, mas sonhei ainda mais... Talvez demais. Tive pesadelos, mas acordei com alguém do meu lado... Senti muita falta da minha mãe. E mais ainda do meu pai. Falei a verdade. E me arrependi. Às vezes menti... Redescobri a Edith Piaf... e aprendi mais sobre arrependimentos. Tive muito medo, mas me socorreram a tempo... Saí da natação (mas pretendo voltar, juro!)... E engordei um pouco (eufemismos sempre são úteis). Vi dezenas (ou seriam centenas?) de filmes ótimos... E outros nem tanto... Vi duas peças magníficas! Rubros ... e Atrás dos Olhos das Meninas Sérias (se elas aparecerem em cartaz, corram pra lá!). Perdi a paciência... inúmeras vezes... Chorei de desespero... Mas me acalmei depois. Chorei de alegria - algumas vezes. Descobri o maravilhoso mundo encantado dos blogs... Descobri que toda vez que eu descubro algo novo, eu fico deslu

A questão do ano...

Aos poucos vou me transformando em ti, meu ainda desconhecido mistério. Teremos algum instante juntos? Ou só abrirás os olhos quando eu tiver partido? Quando beijares meus lábios exangues, com a avidez de sede dos recém-nascidos, terei tempo para tocar teu rosto, para sentir tua febre, para cobrir de sonhos tua história? Serei tua boa semente? Ou teu desencanto? Tua fúria? Ou teu repouso? Terei mesmo ido embora, ou serás tu que nunca terás chegado? Que coisa é essa que nos separa e mobiliza, um para o outro, sempre? Essa coisa que não tem nome, que é feita de espasmos e (des)encontros, essa coisa que nos agita e surpreende. Essa coisa, meu amor, que somos nós. Continuadamente. PS: esse post é um esboço de resposta à (difícil) pergunta feita no blog da Lápis Raro...

De sede, vento e vestígios...

Tento acordar, tento acordar. O sono não me deixa dormir. Tento acordar, tento acordar. O sono não me deixa dormir. A abóbada é imensa, azeda, esplêndida. Tento acordar. O sol queima depressa. Os dedos, os pés, a nuca. O céu é uma esfera perfeita e indecifrável. Eu me acovardo todos os dias. Tento acordar, mas não consigo, os olhos cheios de areia. O peito cheio de vespas. Os olhos da minha amada estão cansados, os meus estão abertos. O sono não me deixa dormir. O calor é insuportável. A janela é toda de vidro e a cidade, atrás dela, parece uma cena de filme. Venta muito, o peito opresso, o trabalho por fazer, o amor por amar. Nada pára, nada se movimenta, tudo espera meu gesto aniquilado. Vou saltar, vou saltar, vou saltar. O sono não me deixa dormir. As palavras não servem mais. Venta muito e meu coração está seco. As vespas se foram, não há mais nada agora. Eu me acovardo todos os dias. Debaixo da pele, a faca de joão. Atravessando. Eu impura, feita de fezes e abismos. E água. As pa

Desafio - Fale sobre "si mesmo" como se fosse um outro...

Tenho visto muitos desafios entre blogs. Sendo assim, como nunca fui convidada para desafio nenhum, tal qual a bruxa da Bela Adormecida, resolvi fazer meu próprio e particular desafio, convidando meus blogs prediletos a participar. O desafio em questão, como os que leram o título já viram, é tentar exercitar o que, lá nos estudos literários, chamamos de " despersonalização ". Então. Como falar de si mesmo é bem difícil, e como o blog se relaciona com esse "eu" desconhecido de forma ainda desconhecida e talvez perigosa (Ai, Narciso...), desafio meus colegas blogueiros (listados abaixo) a falar, não de si, mas de seus próprios blogs, como se outros fossem, como se tivessem encontrado o próprio blog por aí e quisessem falar (mal ou bem) dele para os seus digníssimos leitores. Os objetivos desse desafio ainda não estão totalmente claros pra mim, mas creio que eles passam pelo nobre desejo de auto-conhecimento e aguda reflexão sobre os limites da auto-crítica (ainda mai

Listas e mais listas... Parte 3

Agora que vocês já estão tão viciados quanto eu (a não ser aqueles que leram de trás pra frente, mas isso não importa muito), vamos à lista final dessa trilogia (melhor número pra se fazer uma série, até Deus concorda...): 5 Passos para Fazer uma Lista Bem Sucedida! Comece a sua lista pelo primeiro item. Verifique como (não) se acentua item no dicionário, para não fazer feio diante dos amigos. Tome duas cervejas, dois cafés e fume dois cigarros. Mais do que isso pode te levar a deixar a lista de lado (o que é imperdoável). Menos do que isso pode deixar a sua lista muito careta (o que, além de imperdoável, pode provocar tédio, e para o tédio não há guarda-chuva (leia de novo o poema de joão ...). Escolha um número entre 01 e 2477 e o anote em algum lugar, para não esquecer. Nunca confie em listas de regras, elas são o lado negro da força no mundo maravilhoso das listas.

Listas e mais listas... Parte 2

Outra lista possível é a Lista de Por Que as Pessoas Gostam Tanto de Listas Listas parecem organizar o mundo, o que sempre é motivo de alegria. Listas são fáceis de ler e gostosas de lembrar. Coisas numeradas são mais atraentes. Chegar ao fim de uma lista traz uma benfazeja sensação de trabalho concluído. Listas aproximam pessoas, já que o fato de concordar (ou não) com a escolha, a classificação e a disposição dos itens é indiscutivelmente um sinal de que essas pessoas são almas gêmeas. Listas são simpáticas. Listas são verdadeiras, limpas e saborosas. Listas não têm entrelinhas. O exercício de fazer listas e o de ler listas ajudam a espantar a preguiça e a cultivar a boa vizinhança (sempre é divertido mostrar e comentar listas com os outros). Listas são absolutamente viciantes. Até Deus gosta de listas.

Listas e mais listas... Parte 1

Ilustração da Martina , minha ilustradora predileta. Descobri (nesse sutil universo que é o mundo dos blogs) que as pessoas gostam muito de listas. Descobri que preciso fazer listas também, se quiser deixar as pessoas felizes (uma das razões pelas quais escrevo - o que, aliás, também pede uma lista, quem sabe infinita, quem sabe indecifrável). No entanto, como não sabia bem por onde começar, resolvi fazer uma Lista das Listas que Eu Gostaria de Fazer (uma para cada aninho de vida, já que a semana é de comemorações e já que antes de se fazer uma lista é bom determinar um número finito de itens, sob pena de ficar o resto da vida acrescentando coisas à lista e sua interminabilidade intrínseca...). Então, vamos a ela.... Com vocês, a Lista das Listas que Eu Gostaria de Fazer. Lista de animais cuja dimensão os deixa mais feios. Lista de plantas que ficam mais suaves pela manhã. Lista de palavras que saíram de moda, mas eu continuo usando. Lista de lugares onde eu já perdi um guarda-chuva (o

2 de novembro

Naquela primavera insidiosa e exuberante, onde as flores explodiam pelo calor enervado e vagamente úmido da tarde, ávida de chuva e raios, naquela primavera de febre e sono, onde a luz do sol nas janelas esmorecia de torpor os móveis todos da casa, em um daqueles dias sedentos e amolecidos, onde tudo flutuava devagar ao redor de sua pele delicada de moça, naquela tarde, enfim, paradamente vibrante, ela finalmente cedeu. O sexo foi lento e suado, como pedia o escaldante do dia, e durou muito pouco, dado o esgotamento dos ânimos, mas ficou-lhe gravado para sempre na memória. Não porque tivesse sido o primeiro. Não pelo seu insuflado e latejante cenário. Não porque o moço, funcionário recém-contratado dos correios, tivera a idéia de buscar gelos na cozinha e refrescá-la com suavidade de apaixonado. Não por tudo isso. Mas porque era dia dos mortos. E nesse dia não se faz essas coisas.

Outro Ulisses e Outro Polifemo

Não. Não era esse o plano. No entanto, àquela altura, já não havia mais nada a fazer. A não ser esperar. O pai viria, era certo. Uma hora ou outra. Era melhor esperar. Claro que a posição não ajudava em nada. Era duro ficar de cócoras, agachado por detrás daquele empilhado de tijolos, defendendo um lugar de apoiar com a força do corpo. A visão que tinha da casa, aliás, também era péssima. Tinha que ficar todo atento aos barulhos, para não estragar tudo de vez. Mas o pior, o pior mesmo, era manter o equilíbrio. Sentia que aquela pobreza muscular, aquela fadiga toda concentrada, estavam armadas contra a vontade dele. E tinha raiva. Muita raiva mesmo. Contra os panos duros da calça, contra o embotamento vagaroso das pernas – obrigadas a ficar naquela posição de merda - contra o tempo-todo da espera, contra o frio, contra sua própria idéia de resolver ficar ali. Contra tudo. Ia já começando a ter preguiça, a desistir, a amolecer a vingança sob as águas do sensato, do suor razoável. Tudo e

Outro Ulisses e Outras Sereias

Na venda tinha de tudo. Até coisas de beleza e de limpeza. E de comida. Coisas muitas, variadas. Embelezadas umas pelas companhias das outras assim todas juntas em quantidade. Em variedade. Em teórica limpeza. Em anonimato. Ficavam ali esperando a gente. Disponíveis. Datadas, carimbadas, especificadas, controladas, repassadas, qualificadas. Inertes na prateleira e se movendo na cabeça da gente. Ótimas. Refesteladas nas prateleiras. E tinha facas também, a venda. Tinha faca de todo jeito. Facas para comer e para passar patê. Facas para pegar peixe e pegar bicho. Facas brilhantes e foscas. Facas de caça, de pesca, de morte. Facas para enfiar no outro e para enfiar no olho. Facas de cirurgião e de colocar embaixo do colchão. Facas de crime e facas de paz. Facas cantantes, sedutoras, afinadas. E afiadas. E tinha também, logo atrás do balcão, uma vendedora dessas de sempre e de nunca mais vou te ver. Era assim miúda, com a cara redonda de menina nova. Bochechuda, meio suja da poeira eterna

Despedida para Paulo.

Um dos meus primeiros amores... Em sua última peça (O Avarento)... A indesejada das gentes (1) , chegou cedo demais, não encontrou nada arrumado, nem mesa posta. Mas, ainda assim, o ator soube dizer: - Alô, Iniludível! E ainda achou um jeito, de virar de cambalhota, e de cair de costas, na coxia sem pernas do Invisível. De onde observa, sem tréguas, nosso teatro emudecido. (1) Do poema Consoada , de Manuel Bandeira.

Non! Je ne regrette rien...

Não, não me arrependo... De não ter ouvido mais a Môme Piaf, De não ter ouvido alguns conselhos, De não ter terminado Os Sertões, De ter me orgulhado por tão pouco. De não ter aprendido a tocar piano, De ter me deixado enganar por idiotas, De ter aprendido a sofrer, De não ter me deixado afogar. De não ter beijado (mais) algumas pessoas, E de ter beijado outras, De ter me esquecido de tantas coisas - boas e más, E de não ter me esquecido de outras, De não ter ainda aprendido a perdoar, E de ter falado (quase) sempre a verdade. Inclusive a respeito de arrependimentos.

Um dia ou dois.

Fotos de Ana Elisa Novais [minha fotógrafa predileta] No silêncio de domingo, o pai espera o filho no ponto. Na esquina da avenida, a moto desafina e derrapa. Os adultos brindam seus copos, alheios ao cozinheiro que saiu mais cedo. Na padaria acordada, tremem os vidros de geléia. No próximo telefonema, tudo será combinado. No espelho da farmácia, vemos a sombra de um rosto. Um pedaço de céu esquálido acontece em um beiral sem pombos. A tinta nova do prédio seca devagar e amarela. O mendigo segura as pernas, pra não cair na calçada. Os olhos estão enxutos, mas o coração pesa desastres. Há armas debaixo das roupas naquela casa alugada. O filme foi feito às pressas, mas trouxe muito dinheiro. Os canos enferrujados cantam sozinhos no escuro. As plantas crescem redondas, o vestido já está engomado. Há feridos no acidente, mas não se sabe se houve mortos. O chefe se vinga, o padre semeia, o espanto esmorece. Nada parece enrugado. Mas eu. Eu às vezes me canso - da ferocidade do mundo.

O futuro em tempos de melancolia

Um dia... seremos feitos da mesma matéria dos pântanos, viscosos e úmidos e descuidados... o que equivale a ser um pouco como os ratos, nervosos e úmidos e farejantes e tímidos... o que não está longe de se parecer com a sinuosidade de algumas febres, e com a complacência de alguns criminosos... Um dia, seremos acuados, e viveremos prisioneiros de um tempo esquivo, onde as azaléias vão nascendo escuras e um céu de aço é corrompido por uma chuva indecisa e apócrifa, cuja densidade de ferro repreende os que ainda pleiteiam alguma esperança, essa dilatada e obesa senhora de pele vítrea. Um dia, seremos todos de branco, acossados pelo encerramento dos tempos e aguçados pelos fantasmas de sempre, e em vão percorreremos as ruas, munidos com espadas de estanho e esquartejando teoremas vibrantes. Um dia, seremos todos mortos, e símbolos de plástico nos comerão a pele, os nervos, os ossos, a fome. Viveremos de fé e raízes, mas nossa memória dividirá segredos com carrascos vestidos de alumínio,

Pesadelo

Sonhei que era você e que seguia o seu piso e que perdia o seu rastro e que comia o seu cheiro e que tomava o seu peso e que lambia seu sono e que teimava no escuro a danação do seu tema e que vertia na pele a provação do seu dia e que colava no rosto a proteção do seu medo e que bramia no tempo a expressão do seu time e que fugia de tudo para olhar o seu sono e que calava na carne a felação de anteontem e que seguia sofrendo a esperança da fome e que seguia vivendo a atenção do silêncio e que sonhando se teme o carisma da sede e que você não se vende nem à custa do nome. Sonhei que era você e que falava depressa e que andava perfeito e que deitava de frente e que passava apertado e que peidava no escuro e que odiava a tangente e que queimava o cigarro e que nadava a corrente do sistema enfrentado e que perdia o cinema e que passava de lado e que corria pra frente no espaço apertado e que sofria ao seu lado a memória da gente e que deitava na cama e comia o seu cheiro e que tomava o se

Cotidiano

Seu sorriso, tímido presente, memória de tardes febris. Filme novo, bilhetes guardados, taças de sede e reverberações. Seus olhos, franco sorriso, memória de noites sem fim. Uma dentro da outra, todas acesas, luzes, notas, telas, violões. Sua boca, doce violência, memória de dias assim. Pele e vidro, sol e areia, texto, carne, iluminações.

Para minha mãe.

Onze anos e um mês. Talvez doze anos. Sim, foi quando sua voz começou a se despedir do mundo. E também você. Teus olhos foram os últimos a ir. Para onde? Para onde. Onze, doze anos. Enquanto isso, fui ficando mais forte. Vês, já não sou a mesma, pareço-me cada vez mais contigo. Sim, mãe, tenho ficado um pouco mais firme, mas não mais triste. Fico, na verdade, cada vez mais alegre, mais nitidamente alegre, de uma alegria fina e suave, feita de muitos e tímidos devaneios. É claro que eu gostaria que você estivesse por aqui, vendo tudo isso, reclamando de tudo isso, talvez mesmo duvidando de tudo isso. Mas você não está. Então, vou vivendo assim, meio enviesada, meio trôpega, meio sem armas, mas sempre feliz, porque sei que é isso o que você gostaria que eu fizesse. Ficasse feliz. Então eu fico. Fico feliz quando, todos os dias, passo pela mesma árvore. Intensa e magnífica, recortando o céu, tornando mais leve e dócil o ar, engrossando a terra cansada da praça. A árvore. Ela me lembra voc

Quase comestível

Não, eu não gosto de cozinhar. No entanto, acho comovente quando os círculos perfeitos e transparentes das cebolas, antes tão acidamente cantantes, são mergulhados no caldo espesso e orgulhoso do azeite, para se bronzear e adormecer no fundo escuro das frigideiras. Adoro o cheiro úmido da hortelã, o violáceo impertinente das beterrabas, a madeira antiga das colheres de pau, mexendo insistentemente as abóboras cor de manhã. É comovente também o amolecimento vagaroso, mas inexorável, das raízes mais duras e das carnes mais densas sob o poder das chamas. O fogo, enfim, ainda que mecânico e domesticado, ou tornado quase místico sob as pétalas simétricas de um transparente azul, é sempre inebriante comoção. No entanto, comovem-me ainda mais as vigorosas mãos das cozinheiras, ásperas dos plangentes cortes, do contato diário e fumegante com as violentas texturas da feira: a pele plástica dos tomates; a secura terrosa e vibrante das batatas; o desfolhamento seco e pardo das cebolas; a doçura

Sem máculas

Depois dos dias vencidos, a longa maratona de erros, calou-se, só e atenta, diante das grandes conquistas. Se havia sido difícil, nunca soube, sempre preocupada com a conduta alheia, com a correção dos gestos, com a manutenção das fórmulas. A máquina funcionando. Azeitada, constante, ferrenha. Os cabelos negros aprumados, a saia ajustada e sem vincos, o rosto impassível, o olhar austero. As longas mãos, no colo profundo, pousadas como águias em repouso, depois do ataque urgente. Prestes a. A vasta família, impecável. Os filhos todos prontos e sábios. As filhas todas casadas, com homens de bem e saudáveis, mantenedores úteis e ferozes, mas não muito inteligentes. Graças a Deus. A maioria dos netos ainda na delicadeza da infância, alguns já sendo apresentados às mordaças da espécie e alguns poucos já domesticados e circunspectos, esperando a boa hora do vôo em direção ao altar ou ao mercado, como bem conviesse. A vasta família, impecável. Os olhos ávidos por dinheiro e espaço. Por uma po

Vagamente pessoal

Trago em mim, insone e emocionada, uma criança esquiva. Ela averigua meus cantos flácidos, torna habitáveis meus temores profusos. Ela tece em mim suas noites aflitas, faz de mim sua morada de medos. Eu, muito em mim, às vezes a rejeito em ódios e gritos. E nesse mesmo momento a acolho. Deixo-a fazer de mim o que quer e sempre consegue. Eu a persigo em vísceras, em espasmos, em cólicas. Ela foge do meu carinho mais ginecológico, mais primal. Ela me assusta, me infla, me geme. Ela é minha língua que se move em erros. É meu passado que se move em língua, é minha matéria que se move em vícios, meus vícios que se movem em páginas. Desordenadas páginas de pano e vidro. Ela é a soma de minhas partes e cada parte de minhas incompletudes. Ela abotoa minha roupa pra meu eu maior sair. Ela geme quando não quer ir e impede-me de falar. Ela amedronta e ameaça. Absurda, me comove e plange. Ela em mim entra e sai quando bem quer. Ela é que me existe, me exibe, me idolatra. Me contamina. Às vezes que

Então...

Então, porque você me encantava: eu afinava as cordas do meu mundo incerto, aprumava planos, para desmontá-los logo. Febril, em atividade de amor, me descobri no então-agora do tempo. Detalhei-me em suaves destinos, ouvi sons impensáveis. Você era minha fome e meu anelo com a nova terra que então se formava. Então, porque você me encantava, tomei o espaço nas mãos em brasa, e o tornei em pétala, em pluma, em página.

Sábado de Aleluia

Uma vez fechado o portão, veio a grande alegria. Estava sozinha. Voltou lentamente para dentro, respirando com delícia, já destacada de si. Viu-se, ao longo dos dias e das noites seguintes, podendo fazer o que bem entendesse. Viu-se estendida no quintal, olhando o céu por horas a fio, não se importando com a comida ou com os deveres de casa. Viu-se afundando as mãos na terra seca, sentindo os cheiros todos do mundo, que crescia e se multiplicava, enquanto contava e recontava cada uma das vibrantes ondas de luz que por ali serpenteavam. Viu-se inteira e solta, livre para ficar quase três horas no banho, sentada no chão do box, deixando a água cair nas costas como uma cachoeira pacífica e determinada, enquanto se ocupava em desenhar com o xampu quadros efêmeros e impressionantes nos azulejos esverdeados. Viu-se lambendo a panela do bolo, que faria com o pote inteiro de Nescau, sem ter que dividir o prazer com irmão nenhum. Aliás, viu-se sem irmão nenhum, enfiada nos quartos deles, brinc

Outra Sonata de Outono...

Ela era uma mulher estranha. Apareceu no meu consultório há quase três anos. Nunca mais voltou, mas contou-me sua história terrível. Pediu-me conselhos. Eu me lembro de ter falado alguma coisa, sem muita convicção ou interesse. Na época, estava envolvida com outros problemas e, de alguma maneira, eu sabia que ela não voltaria mais. E rapidamente me esqueci dela. No entanto, nos últimos meses, sua presença oblíqua e altiva tem me entulhado a memória de fantasmas. Aos poucos, fui me lembrando de cada detalhe da sua longa história, que me foi parecendo, dia após dia, cada vez mais real e remota. Como se viesse, maldita e cansada, do interior abrupto e cristalino de múltiplos espelhos. Como se fosse ela mesma uma sentença. Ou um enigma. Começou assim: ela odiava a filha. Desde o nascimento, ela a odiou. De acordo com ela, cada espasmo de vida daquela minúscula criaturinha era preenchido e alimentado por um ódio calmo e delicado, mas poderoso, que a tornava, se não mais feia, cada vez mais

Meu nome é legião...

Meu Prezado Amigo, Escrevo-lhe esperando que você me avalie tão severamente quanto o faria se não me conhecesse tão intimamente. Procuro-o menos como amigo e mais como o profissional que é, médico e pesquisador respeitado, conhecido em sua comunidade e fora dela como um dos altos nomes da psiquiatria. Pensei em mandar um e-mail, mas tive medo de que as informações ali colocadas se extraviassem ou caíssem em mãos inescrupulosas (já me avisaram que e-mail´s são como cartas abertas vagando por universos confusos e perigosos, sujeitas a assaltantes, saqueadores e curiosos de toda ordem). Enfim, como as informações que se seguem são confidenciais e bastante perturbadoras, imaginei que o melhor mensageiro seria de fato o Correio Nacional, com sua variante registrada. Sei que a preocupação é um tanto quanto paranóica, admito, mas a minha posição e fama assim o exigem. O fato em si é simples, mas terrível. Não o comuniquei antes porque não vi logo o perigo. No início, senti-me apenas perturbad

Todos os meses

Todos os meses ela vem. Uma vez por mês. Ela vem para pagar o aluguel dela. Todo dia 07, dia 08, ela aparece. E eu fico esperando. Todos os meses. Fico esperando ela entrar pela porta, ágil, mas delicada. Ela entra. Entre um velho de barba rala e calça de moleton e uma senhora maquiada de rosa e vestida de preto. Entre a turma de adolescentes do interior e a velha de bigodes. Entre um ou outro cliente, ela aparece. Um lampejo bonito no meio dessa baderna que é a minha imobiliária. Quer dizer, minha não, que eu não sou o dono. Minha é modo de dizer. Mas às vezes ela vem em horários mais vazios, e posso olhá-la mais demoradamente. Não faço atendimento no balcão, fico só na contabilidade. Mas a imobiliária é toda aberta, ela toda é atravessada pelo grande balcão de atendimento, as mesas dos funcionários ficam atrás desse balcão, como se fosse atrás de um biombo, só que mais baixo. Então, da minha mesa, posso olhar quando ela entra e quando sai. Quando está triste, quando está entediada, q

Pão e Circo

"... Ele é o empregado discreto Ela engoma o seu colarinho Vão viver sob o mesmo teto Até explodir o ninho..." [O casamento dos pequenos burgueses - Chico Buarque - 1977/78] Todos os dias, às 10 e 45, de flanela em punho, ela coordenava os últimos retoques da empreitada matinal de todos os dias: a meticulosa e vasta arrumação da casa. Depois de limpos todos os quartos e arrumados todos os banheiros, depois de devidamente alimentadas de água e adubo todas as plantas, depois de afofados os travesseiros e guardados todos os objetos que haviam saído de seus lugares, depois de trocadas as toalhas e depois de eliminados os traços de lixo de todas as lixeiras, depois de capturadas as roupas já secas no varal (coisa que ela acabara de fazer), depois de tudo isso, então, às 11 e 55, com o cesto de roupas em uma das mãos, ela atravessava o quintal imenso. Saía de trás dos lençóis coloridos estendidos no varal como de trás das cortinas de um grande teatro. Suspirava, com uma das mãos s