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Mostrando postagens de 2010

Poema número 31 (ou 13)

Eu falo de um dia como muitos dias. Esquina, almoço, vitrines, mendigos. Eu falo de um dia como tantos outros. Chuva, mormaço, atrasos, relógios. Eu falo de um dia em que a porta se abre, E lá fora vemos suspensas surpresas. Os jornais dizem: as coisas mudaram! E esse dia não é mais como os outros. Mas o mundo não muda muito. Ou tanto. Tudo continua a crescer, com bastante força. O ódio, a fome, a dor, os impropérios. A esperança também cresce, essa senhora daninha, Estranha esperança que não morre nunca. Ela cresce e me comove, como se o mundo fosse outro, E o dia de hoje não fosse como tantos. Ela cresce e me comove, como se o dia fosse inteiro. E o mundo de hoje não fosse quase o mesmo. Ela cresce e me comove, como se o amor fosse novo. E o desejo de hoje não fosse desde sempre.

De novo...

Fratura é coisa sem termo. E não é não. Depois do corte, o espanto. A dor, o ponto, o gelo. A sutura imperfeita. O alarido das coisas que não cessam. Que não se rendem. Depois, depois. A coisa cicatriza. Mas fica na pele feito coisa que termina. E de vez em quando se agita e geme e ferve. E toma conta. Como aquele sorriso perdido entre balbúrdias. Como um afago incompleto. Resto de um silêncio sem partida, sem contornos. Ao depois passa. Mas de vez em quando volta. A queda, o grito, o sonho. Volta como quem perde uma amiga. Surdo e exposto. À deriva.

Aliás

Aneta Grzeszykowska e Jan Smaga Aliás, o medo. É sobre o medo que eu queria falar, agora me lembro. Me lembro mesmo muito bem, ele está aqui. Ele está aqui comigo. O tempo todo. Era isso que eu queria falar. Meu medo não é paralisante, como dizem por aí. Não é disso que se trata. Se trata de falar do medo. É disso que eu quero falar. Mas ele me escapa. Me escapa sempre, como quem foge, mas está sempre por perto. Como quem está atrasado, mas ainda nem partiu. Ele está sempre por perto. Mas não me paralisa, não, como dizem por aí. Ele me movimenta. Meu medo organiza tudo. Dá corda aos relógios, levanta os muros. Meu medo acorda, anda comigo pela estrada, me traz sombra e susto, me suspende. Escreve comigo diários de medo, máquinas medrosas, escolhas perfiladas. É isso. É assim que acontece. Ele dá as cartas. O tempo todo. Meu medo é um sumidouro. Faz desaparecer o dia, a noite, os anos inteiros. Me leva com ele pro abismo, me faz cair por tempo indefinido, me faz conversar com os gatos.

Dúvida

Se cada discurso pode ser um começo, e cada percurso um tropeço, vale dizer que qualquer postura é um avanço, sem deixar de ser retrocesso? Se cada movimento pode ser um princípio, ou um processo, e cada ternura um alívio, ou um deserto, não convém admitir, finalmente, que toda leitura tem seu preço? E o resto é resto?

Quase assim...

Fonte da foto: http://inafractionofasecond.blogspot.com/2010/01/irish-blessing.html Há muito tempo que não escrevo. Há muito tempo que não salto, não ganho, não perco. Estou atada numa espécie de silêncio complacente e revoltado, diante do mundo, diante das coisas. Tenho pouco a dizer, porque as palavras quase sempre me cansam. São demasiado impuras, demasiado invasivas. Mentirosas mesmo. Infames. O que tenho a dizer não é íntimo nem grave, não é passado nem futuro, simplesmente não existe. Não quero falar nada, nem nada compartilhar. Quero apenas estar aqui. Quero apenas, num espasmo antes de tudo egoísta, mas profundamente humano, me apagar num gozo flácido de mim mesma, vouyer alheada da comédia social, sempre tão mesquinha e quase ridícula. Esse apagamento, no entanto, só pode acontecer sob a égide de uma participação meticulosa, coordenada, estratégica. Não basta ser, tem que participar, já dizia um comercial de remédio para contusões. Muito apropriado, aliás. Participar

Nem assim tão noite

Foto: Yosigo Como começou esse poema? Ele começou em uma noite de insônia. Terminou agora. Terminou a medo. Porque é preciso ter medo para sobreviver. Começou com o medo e terminou depois. Depois do medo é o sonho. De não ter mais medo. Mas aí, nada. O nada também vem depois do medo. Tudo são palavras e é preciso nascer muito para entender. Que é tudo vazio e de noite, mas de vez em quando se canta. Seja porque o instante existe, seja porque se tem medo e é agora. Eu canto a noite, de noite, no escuro. É bem tedioso, mas funciona. Eu canto a noite e suas dádivas porque tenho insônia e medo e escuros. Se tivesse outras coisas, outras coisas faria, mas isso é só o que tenho. Contentem-se. É pouco. Mas é quase azul.

...

No meio do verso, o susto, Seja ao meio, expectante. No meio do verbo, o meio, Seja em morte, exultante. No meio de tudo, um pouco, Quase nada, quase antes. No meio de mim, eu mesmo, Quase verbo, Tremulante.

Não por acaso

Imagem: Margaret Durow O caso sobretudo era o de estar presente. De calcular a hora certa. Agir precipitadamente não era pra ele. Tudo precisava ser desenhado com muito gosto. E precisão. Ele era um homem de sobreavisos. Não podia falhar. Estar ali, no instante exato. Executar o gesto, coisa tão simples. Evitar desvios. Não derrapar. Conquistar primeiro os olhos. Depois as mãos. Depois o resto. Era mesmo tão fácil quanto diziam. ... Porque então não parava de tremer? Ou de soluçar?

Faça você mesmo seu jogo linguístico

Escrever no vazio. A partir do vazio. Sobre ele, com ele, em torno dele. Escrever o vazio. Esvaziá-lo. Não é assim que se excede? ... Escrever no excesso. A partir do excesso. Sobre ele, com ele, em torno dele. Escrever o excesso. Torná-lo excessivo. Não é assim que se escreve? ... Escrever na escrita. A partir da escrita. Sobre ela, com ela, em torno dela. Escrever a escrita. Entregá-la. Não é assim que se ama? ... Escrever no amor. A partir do amor. Sobre ele, com ele, em torno dele. Escrever o amor. Revivê-lo. Não é disso que se morre? ... Escrever na morte. A partir da morte. Sobre ela, com ela, em torno dela. Escrever a morte. Morrer a morte. Não é assim que se fica vazio?