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Mostrando postagens de 2008

Substantivo suicídio

O suicídio de um rato não é igual ao suicídio de um inseto não é igual ao suicídio de um mastro não é igual ao suicídio de um templo não é igual ao suicídio de um resto não é igual ao suicídio de um vício não é igual ao suicídio de um gesto não é igual ao suicídio de um fato não é igual ao suicídio de um tempo não é igual ao suicídio de um vivo não é igual ao suicídio de um morto não é igual mas é suicídio

Até aqui...

Foto de Maybeoctober Encerrar o ano é um recurso muito útil. Todos sabem disso. Há todo um investimento coletivo no sentido de empacotar a memória dos doze meses anteriores, em envelopes bem datados e bem lacrados, e de preparar um ritual cuidadoso de despedida. Afinal, todo espetáculo tem fim. É preciso fechar as cortinas, apagar as luzes e sair de cena. É preciso dobrar os panos, encaixotar as fantasias e tirar a maquiagem. É urgente trancar as portas e deixar tudo pra trás. Pra poder seguir em frente. Uma frente, todos nós sabemos, que é mesmo o meio do mundo. O meio do tempo. O meio de um espaço todo bagunçado, que não tem começo nem fim. Que não tem bordas, que não tem saída nem entrada, que não tem sentido. Mas que continua. Todos sabemos disso, mas isso não chega a ser um problema, porque ninguém quer saber disso. O futuro foi por todos nós traçado e por todos nós será escrito. Ele vai sempre pra frente. Inapelavelmente. O futuro sou eu e você. O futuro é a nova peça que começa.

Depoismente do fim

Aceita. Tudo acaba, escritor. O que é bom dura pouco. Mas não se desespere. As coisas te farão companhia. As memórias, ainda que dispersas ou já dispensadas, podem te perseguir docemente no escuro, amargadas de terem partido. Subrepticiamente. A faca e o queijo. Cá estão. Faça deles e com eles o possível para não sofrer. Não rompa em soluços, não arranque os cabelos. O livro acabou. Não há mais palavras. Mas faça o possível para esquecer isso. É fácil. É só pensar que tudo é feito de água. Tudo mesmo. Água escoante, vibrante suave, contornando os perigos, amolecendo pedras. Águas torrenciais descem do céu. É tarde. Você fracassou, mas as pernas estão inteiras. Andam, adormecem, se estendem. Muito brancas. É cedo para sofrer. É tarde para partir. É hora de desistir. De golpear o ar. ... Mas depois. Ah! Depois você pisca o olho e sorri. O mundo está todo inteiro de novo. A chuva se foi. O cansaço também. É domingo. E a literatura continua.

Narcisistic home

O negócio é o seguinte: talvez a escrita nem comece. Estou em casa. Ou mesmo na rua. A casa é o intervalo para a rua. A casa é o começo da conversa. Daqui, ouço gritos. Moro no centro. O centro da cidade é um estampido. Rumores de todos os tipos. Sonoros, roucos, mudos. Viscosos. Gritos. O tempo todo. É como uma espécie de fábrica. De mugidos e cisternas. De gargalhadas. É como uma espécie de mercado. De fim de sexta-feira. Assovios, apitos, estalos, arranhões. Todo mundo. Algo vibra o tempo todo. Não faço idéia do quê. Bom, está chovendo. Mas não é o barulho da chuva. É atrás da chuva. É atrás do som. Algo que não se escuta nunca. Só agora. Depois do silêncio dos tacos. Antes do elevador. A casa é engraçada . Toda em portas. Um corredor. Algo que se estica. Uma varanda. Portas encardidas. Pedaços de fios. Conexões. Rios antenados espumando ligando controlando. Confirmando. Somos todos muito sozinhos. O lugar do telefone é importante. O espaço da tv. O espaço da fome. Eu não tenho

Soleira

Sentada à beira do sol, como a beira de um riacho, a menina mergulha as pernas na poça escaldante de luz. O resto do corpo esfria na sombra, refrescado em repouso de paz. Do lado de fora, a cidade passa por ela, em lenta progressão anti-cinematográfica. Paquidérmica e grave, escorre em sua modorra de verão. Do lado de dentro, a casa descansa refrigerada. Telhas de barro e louça enxuta. Quem vê, pensa que está tudo parado. Mas não está. Na porta, o polígono luminoso avança pelas pernas da menina, subindo aos poucos em seu erotismo delicado. Os pés já fervem sobre o cimento, joelhos e coxas vão mergulhando devagar na piscina de calor. A essa implacável arremetida da natureza, ela se expande. Cada vez mais lânguida. O corpo amolecido de amor. A febre cada vez mais urgente, ávida, úmida. Entregue. Por fim, já quase exangue, a pele iluminada tem sede - e insiste em fazer sofrer a menina. O suor aumenta seu trabalho, refresca os dedos, o pescoço, a fronte. Os olhos. É tarde, é tarde,

clip

Foto de Guy Sargent Sobre o meu colo repousa quase pluma sua presença-presente E a lembrança desse ardor já quase antigo desfia desnuda desperta temas que nem têm nome ou forma Mas andam comigo suspensos Em franca vizinhança

pois é

Otávio dizia assim: eu fui até o fim por você! Ao que Sofia retrucava: então, meu bem, e daí? Você nem morreu nada, morreu? Ela não era muito romântica, e era bom que fosse assim. Otávio, afinal de contas, era só um moço comum que queria sofrer um pouco. Mas o fim era muito longe. E Sofia tinha uns seios lindos. Era melhor que fosse assim. Mais simples. . Mas depois de murchos os seios. E acabado o amor. Ele teve que admitir. Que era um moço comum. Sem final trágico. Ou enredo exuberante. . Mesmo assim. Não era nada simples.

De repente

De repente, era a alegria que voltava, De mansinho, de tardinha, como um sopro de vento depois de escaldante calor, como beijo de amigo depois de briga, como sorvete depois do trabalho, como saúde voltando, vida, expectativa, densidade, começo de noite na praia, banho de cachoeira, patinação no gelo, bicicleta na descida, jabuticaba no pé, passarinho voando bem alto, no esplêndido violáceo do céu, de repente era assim, como livro bom e rede, como parede caiadinha de branco, móveis antigos de madeira, música de chico, casa de oscar , pandeiro e violão, calças listradas, vestidos azuis, boinas de lã, suspensórios, candelabros, cinema, praça, algodão doce, vitrola, janela com paisagem, céu de brigadeiro, vertigens, era assim, de repente, como tudo o que é mais gostoso e suave, como um beijo roubado, como algo que se declara, que de repente se diz, suspense solto no espaço da luminosa alegria.

No calor do cansaço, uma febre que volta...

Eu estou tão cansada de que me digam o que fazer. O que temer. A quem amar. Eu estou tão cansada de não poder sofrer, ou gritar. De não me deixarem mentir, pra mim ou pra outros, sobre gostar de mim ou de outros. Estou cansada de meias verdades, de verdades inteiras, de receitas de bolo. Estou cansada de amor viciado, de febre nos olhos, de sonhos vencidos. Estou cansada, perdida, exausta, retorcida. Estou cansada de pensar em adjetivos. Estou cansada de parecer bem estruturada, antenada, discreta, correta ou corrosiva. Estou cansada de ser eu mesma e de ser outras. De ser simpática. De ser pedante. Não quero mais controlar nada nem me esforçar para que não me controlem. Estou de saco cheio de pesar as palavras e a elegância. Estou profundamente cansada de ser elegante, me desculpem. O vômito também é real e prazeroso. Vou falar de coisas fétidas ou supérfluas, só porque me deu na telha. Nem é pra chocar, é porque estou com saudade. Estou com saudade de um mundo meu que nunca existiu,

A ave

eu sei eu sempre soube da fragilidade frugal e oscilante do vôo de um seu abraço . eu sei eu sempre soube da sua textura vibrátil longelineamente fugaz e estonteante . mas eu nunca soube até então do seu corpo a densidade o frêmito quase pássaro entre minhas asas . tímida pluma quebradiço silêncio gravetos . eu sei eu sempre soube seus olhos me diziam seu sorriso seu perfil sua grave elegância de ave prestes a partir me diziam . e se no espaço pássaro do abraço eu te deixo ir é porque sei como voas lindamente e suave pousa de novo e de novo em mim sua vertigem de delicada ossatura . eu sei eu sempre soube quando tudo é muito agora já é muito longe . e flutua

Todo dia

Todo dia, o amor faz em mim tudo sempre igual. Me acorda e me move com ele, todo espanto e sono invencível. Me exaure e me alimenta, me despe e me respira, toma banho comigo, me desatina, me agita, me salva. De mim mesma me salva. Nada pontual. Me escande em muitas sílabas, de fé e silêncio e desejo. Me lava os pés, os olhos, muda esfinge de água. Me enxuga e me veste. E finalmente me acorda: roupas velhas, alma nova. Todo dia, o amor faz em mim tudo sempre igual. Me escolhe, me constrange, senta comigo, tomando café. Molha comigo as plantas, olhando pela varanda, paisagem de estanho e neblina. Às vezes muito azul, às vezes domingo. Às vezes feriado de sol. Manda mensagens, o amor, pelas minhas mãos já antigas. Chora comigo, calado, esperando que alguém interrompa essa forma fútil e febril de fazer contato comigo mesma. Depois ri, desatinado e urgente. Bobo de esperança e carinho. Pleno de cuidados, ele me chama menina. Tola, melancólica, poeta. Larga pra lá e vai pela rua assoviando.

Professorar

Foto: Girly Lifestyle ...Since feeling is first who pays any attention to the syntax of things will never wholly kiss you... E E Cummings A compreensão correta d e uma coisa e a má compreensão dessa mesma coisa não se excluem completamente. Kafka Guimarães Rosa começa: professor é aquele que, de repente, aprende. Eu vou continuando: professor é aquele que, de repente, desaprende. Eu tenho desaprendido. Eu tenho aprendido a desaprender. E tenho aprendido a sinceramente acreditar. Que o outro aprende sim. Mas não sou eu que ensino. Somos nós que entramos em um estado de contato. E alguma coisa acontece. Uma coisa que continua. Nem sempre pra sempre. Mas continua. É como orar. Você se entrega a uma coisa maior. E ela de repente acontece. É um estado de amor. E de alegria. Amor pelo desconhecido. Amor pelo impossível. Sim, porque é impossível ensinar. Impossível transmitir. Mas é possível colocar em movimento. Começar. Encontrar-se com. Tocar. Tornar talvez possível. Tornar o encontro pos

ufa!

Ao fim e ao cabo, estamos reduzidos a ser uma coisa que espera. Um sopro de vento, aragem de alívio. Um sorriso. Uma prova, uma resposta, uma dádiva. Um gesto. Uma saída. Mas pode bem ser que toda esperança seja apenas um modo esquivo de recusar o milagre. Do que já está insuportavelmente sendo.

Montes Claros

Há coisas que não se explicam. Como um modo de amar o passado. Umas ruas empoeiradas. Uma praça, umas igrejas e duas escolas. Minha casa. Há coisas que não se explicam. Como um modo de amar uma cidade. Uma cidade que não pude enfrentar por 11 anos. Como um modo de silenciosamente dizer: Mãe, eu não pude mais voltar. Mas voltei. Caminhei tudo de novo. Refiz todos os meus passos. Um por um. Primeiro, a escola. Dei a aula que tinha que dar, na mesma escola que me abrigou dos 10 aos 16 anos. A aula foi longa, e nela couberam infinitas coisas. A primeira aula de literatura, claro. E o primeiro amor. O espaço breve e intemperante de cada uma das salas de aula. E os corredores de cimento. Os bancos onde crescíamos, tontos de mundo. E a dor de pertencer. Os discursos alados. Os discursos perdidos. Olhos e vozes esquecidas, perdidas no desdobrado ensandecido do tempo. A aula foi longa, e nela couberam tantas coisas. Todas elas inexplicáveis. Todas elas urgentes. Da urgência doce e melodi

Concurso de Literatura!

Achei a iniciativa bacana e estou ajudando a divulgar... ____________________________________________________ A Universidade FUMEC está com inscrições abertas para a primeira edição do Prêmio de Literatura Universidade FUMEC , que tem o objetivo de incentivar a leitura e a produção literária no país, prestigiando obras inéditas e estimulando estudantes de todo o Brasil a investirem na carreira literária. O gênero escolhido para o lançamento do prêmio é o conto , forma narrativa em prosa de menor extensão. Podem participar alunos regularmente matriculados em escolas de ensino médio e superior de todo o país. De acordo com o reitor da Universidade FUMEC, professor Antônio Tomé Loures, o Prêmio é uma forma de estimular a criação e o talento de jovens que têm afinidade com a Literatura. “A universidade tem um papel muito importante no desenvolvimento da imaginação dos jovens. Temos que motivá-los a investir na escrita a partir de iniciativas como essa. A arte, em especial a Literatura, e

Intervalo

Há um modo de ser da esperança que é quase um hiato, um espantado modo de olhar para o mundo, para o tempo, para o desejo. É um modo de ser enviesado, doloroso, quase ritual. É um modo de viver sem pensar no que está perdido, nem no que virá. É um modo de ser meio ao meio. Há momentos de suspensão, e dúvida, em que tudo parece estar tomado de uma luz frouxa de banalidade. Há momentos de lento apodrecimento. Há momentos em que a pele fica mais leve, quase fluida, de tão insossa. Há momentos em que a história parece escoar por dutos rasos, sobrevoando sôfrega a superfície das coisas, esquecendo-se do endurecimento do tempo. Há momentos sem angústia, sem crise, de puro cansaço mórbido, amolecido, dormente. Há momentos em que a vida é lívida espera, quase doce de tão frívola. Há momentos que são como feitos de ar: existem, mas não se pode vê-los, nem tocá-los, nem mesmo recuperar sua memória - vulgarmente pálida, nem trágica nem cômica. Há momentos em que as palavras são sonoras, mas não d

Sem meio termo

Foto de Olinwena Tornar imprevisível a palavra não será uma aprendizagem de liberdade? Gaston Bachelard É por isso que tomo a palavra manhã, e faço dela um sopro de matizes audazes e matreiros. Deliciosos. É por isso que estendo a palavra ímã, e me afogo nela como num ventre gelado e fútil, como num sonho, como num cedro. Como num vértice. É por isso que pretendo que essa cor, a teerã, é tão ou menos feroz do que a do descompasso, do que a da lágrima vencida. Da sinapse venturosa. Do vício. É portanto essa quimera, a verborrágica, que não se finda, nem se vulga, nem se cala. Nem bem nervosa, nem sempre estropiada. Ou fílmica. Nem quando estou triste ou puta da vida. Nem quando estou sem medo. Quase findo. É meio estrábica, meio barroca, meio silábica, meio travessa. Meio um pouco disso tudo. Coitada. Química de venenos e verdugos. Desconexa. Chave de cadeia, mel de reminiscências, mistura insalubre e selvagem. Doses, poliedros, semáforos, desocupâncias. Degenerescências e candelabros.

Fragmento seco

Mas chega de descrevê-la. Ela apenas era. E os principais verbos dessa fábula se parecem com andar. Arranhava na estrada seus calcanhares de pedra. Seus pés rugiam na poeira vaga e vermelha daqueles caminhos nordestes. Ela fazia sua dimensão. Ela era toda ausente. Ela era uma mulher com uma lata. A lata brilhava ao sol. A mulher não.

Como fazer seu amor amar você em 12 lições...

Foto de MicroAbi 1: Roube umas estrelas pra ele. Amores amam estrelas. 2: Quando for entregar as estrelas, não se esqueça de embrulhá-las em papel de seda azul. O dourado delas vai ficar todo encantado. 3: Quando for suspirar, prenda a respiração por 7 segundos exatos. E envie durante esses 7 segundos 7 trilhões de saudades para o coração delicado do seu amor. 4: Quando acordar, feche os olhos do sonho com um beijo de boa noite. Sempre funciona. 5: Ande de olhos fechados pelo território do segredo. Se você não resistir e abri-los, finja que não é com você. 6: Quando for dormir, cumprimente seus sonhos entusiasticamente. Afinal, são eles os responsáveis pela movimentação inteira da terra em torno do seu amor. 7: Leve sempre pão e vinho para seu amor. Não o deixe perecer por falta de alento. Nem por falta de alegrias. 8: Toque seu amor com dedos de orvalho e de tempestade. A luminescência convém com a paixão. 9: Ao olhar para ele, cubra-o de calafrios. A pele é sempre nova para suavidad

Diariamente

Nos últimos dias do tempo dessa semana que passou passei por mim e não vi segredo bom que ficou fiz projetos, fiz cenários, fiz suspiros acordei toda acesa, matizada roupas coloridas, brigadeiros, capelas douradas, coroas, vestidos que chegam, poemas, histórias de criança, envelopes ganhei sorriso doce e mensagem atrevida de uma e uma recusa muito delicada de outra o sorriso dela, os olhos um jeito de andar meio intrépido a linha curva do nariz um rosto querido um tom do suave mistério desse tempo que é memória e escrita e silêncio eu tomo medo, tomo tento, tomo cuidado mas não tomo jeito sou toda entregue

Ouro de mina

De herança herdada, boca, olhos, pele, estatura, sou uma parte e um todo. Indecifrável. De herança transmitida, fala, olhar, tensão, postura, sou artesã rebelde e rouca, cada dia uma parte, cada dia um todo, cada dia um parto. Rasurável. Herdei olhos claros, mas recuso sua tristeza, mãe. Sua melancolia. Herdei dedos longos, mas os meus procuram mais as carícias. Eu tenho fome, pai, por isso rejeito sua herança de ferro, de contenção, de controle. Herdei lábios finos, mas falo por eles como quem sofre, e pede, e recusa a morte, o tempo que acaba, a reserva. Tenho-os ávidos, loucos, irascíveis, intermináveis. Indivisos. Sou pequenina de um modo estranho, porque me sinto breve sobre a terra interminável do tempo. Meu corpo se espalha, lúcido e livre, sobre tormentosas fronteiras. São histórias inacabáveis, que me alongam desde o nordeste, de onde vim, e me expandem em sulistas memórias - frio, deserto, tempestades. Nascimentos. Herdei o mar e sua vastitude. Herdei a planície de araucárias

Um sopro

Na macia noite, procuro um poema, para dizer o inaudível, Ou o ainda não dito. Mas os poemas fogem, ou não existem, talvez nem mesmo caibam, ou persigam, pontos de fuga, sistemas, calafrios. Então me debruço inconteste, naquilo que consigo fazer, contaminar, exercer, dominar: dizer ao poema, que diga, que voe, que vague, que explore, que vá até ela, e advogue, em favor de mim, ou do que seja; e do que em mim fala, como um navio, como um espanto, como um respaldo, de tudo que em mim é deriva, e desejo, e desastre, que ele diga tudo. E que eu enfim me cale.

Exposição

Livros intermináveis, expostos, insondáveis, ilegíveis. Letras inabordáveis, estranhas, intangíveis, quase insuportáveis em sua macia ilegibilidade, renda, suporte, folha, desabrigo. Cobre, tecido, flutua, desencadeia. Espaço vazio escandalosamente recortado. Letras gráficas símbolos jóias fios feixes. Cardumes de folhas, de páginas, de lombadas grossas e pesadas como os livros da minha infância, de capas duras sóbrias e permanentes expulsando madeixas cabeleiras rios mistérios cachoeiras. Livros intermináveis. Minha vida exposta. Difícil de tocar. A pele do livro. A pele da vida. Difícil de pegar, de ler, de traduzir. Páginas que se misturam, engancham, estorvam, entrelaçam. Escandem, sílaba após sílaba, um rendado todo feito de marcas, de peles, de gritos, de fios partidos, de esperas urgentes. De vazios. Impressões sobre a exposição Seu Sami , de Hilal Sami Hilal (até 14 de setembro no Palácio das Artes)

Um novo final para Celestina

Celestina era moça direita e engomada, gostava de rosas e de suspiros quentes. Passava as tardes costurando com a mãe, e as manhãs ensaiando um modo de dizer a seu vizinho Demerval o quanto o amava. Escrevia cartas, fazia músicas, assava bolos. Seus poemas eram intermináveis; suas rimas, sofridas e urgentes. Eram delicadas. Mas não podiam atingi-lo. Demerval parecia ser muito exigente. E não tinha a menor cara de quem gostava de doces. Acontece que o modo limpo e claro com que ela o amava, uma vez exposto, uma vez marcado, uma vez cantado, uma vez declarado em papel de seda, assado no forno ou aceso na boca em forma de riso, ficava roto e sofria, murchava e caía, em petição de miséria. Não é bem isso... pensava a moça, com o bolo esfriando nas mãos, com a canção de amar se desmanchando no colo. Essas permanentes - e talvez inglórias - lacerações na pele fina do amor foram fazendo de Celestina uma moça cada vez mais direita. E cada vez mais engomada. Aboliu as rosas, porque tinham espin

Mesmo nome, outros amores...

Gente, Andei escrevendo cartas de desamor e nem sabia... ... O resto do blog também é fofo. Vale a pena conferir. Dica da Fal . Não conheço nenhum Ernesto. E nunca fui convidada pro samba por nenhum deles... mas que eu queria ter escrito essa cartinha, lá isso queria... : )

Linea

As cores da inspiração são assim mesmo, costumam vir todas misturadas, embaralhadas, trocando seus matizes em reverberantes formas... sua fome é a de confundir poetas e desavisados, embora sejam sempre bem vindas, em sua vibrátil e cantante euforia... e dispersão... mas às vezes, só às vezes, numa tarde de domingo, em um final de inverno, elas resolvem se estender organizadas, longilíneas, evanescentes, suaves e lânguidas, em feixes contínuos de luz... formam, então, linhas paralelas de múltiplas cores, adensando-se em dinâmicas horizontais ou verticais, largas ou estreitas, lívidas ou generosas, e se preparam para criar um universo de beleza todo especial... um universo todo listrado... que me move, colorido e urgente, para além de mim mesma... e de minhas lembranças... e faz, de uma parede em sua matéria, de um par de longas pernas em seu tecido dançante, e de dois olhos sorridentes e queridos, um motivo de esfuziante alegria. E tímida expansão.

Teoria do Encontro II

Para minha amiga S. Que é do amor, esse desarvorado, que flui diário e urgente como um fantasma? Que é da espera, essa impassível, que lenta e secreta move-se em águas profundas? Essas palavras quiméricas, tão desossadas... A expect-ativa, ação de espera, ação ativa de espera e urgência, é sempre uma entrega erótica, de encontro, de desencontro, de mãos que se tocam e fulgem, de peles, de reentrâncias. É sempre uma exposição, uma expansão, uma deriva. Talvez seja mesmo uma desmedida. Ou uma espécie de demência. O peito expectante, em estado de combate, em estado de experiência, em estado de milagre. Aguardando. O corpo indo, antes do olhar e do conceito. E de todas as palavras. O corpo vibrando, já entregue, sob as mãos daquele que molda a terra. E talvez o silêncio. A pele iluminada, efervescente, suspensa por novas e candentes delícias, não para de tatear no espaço, no tempo, em estado de pétala, de seda, de musgo. De superfície. A pele, essa impossível, quão desordenada e profunda n

A mulher azul

Montagem a partir de fotos de Federico Erra [Sugestão de Anne Gusmão] Uma mulher azul caminha. O universo está restrito. Ela foge. Eu fujo, na iminência inconteste do texto. A mulher azul tem pernas e anda, descontente e absorta. Sua pele, no entanto, deflora. Gestos contidos e olhos estertorados. O céu da sua cor, as águas, o vento. Nada te barra, tudo te agita. Isso é o que te move, em silêncio de astro. Você anda, seu hábito alucina. Vendo-a de lado, eu apavoro o gesto. Sinto-me invadida por pequenas luzes. Tudo é muito e muito pouco agora. Mas meus mortos espreitam a sombra e o susto. Louca, sua sombra vaga, azúlacea e anômala, verte seu tino. Eu, desabusada e absurda, ouso escrever esse desarvorado segredo. O acaso, pai de todos os artistas, inventou seu nome, sua cor, seu ritmo. Escrevo-te, mulher azul, sua ruína. Visto seu uniforme e espero seu turno acabar. Depois dele, começa minha escrita. Quando você saltar do ônibus, e percorrer a pé suas ruas e excrescências, eu lá est

Bruffles e Preocuda

Bruffles era asmático. Preocuda era sintomática. Bruffles gostava de catacreses. Preocuda, de paranomásias. Bruffles torcia pra muitos times. Preocuda não torcia pra time algum. Bruffles gostava de sombra e cevada. Preocuda era da pá virada. Bruffles era neurótico. Preocuda era poliédrica. Bruffles gostava de verborragias. Preocuda, de anestesias. Bruffles torcia pro mundo mudar. Preocuda rezava pro mundo acabar. Bruffles gostava de sistemas e de anacoretas. Preocuda gostava de espasmódicas mutretas. Bruffles era um vegetariano convicto. Preocuda preferia a carne tenra dos delitos. Bruffles gostava de meditar sobre os problemas do universo. Preocuda não se importava com nada que não fosse o próprio sexo. Bruffles era carinhoso, gentil, quase um menino. Preocuda era frívola, aérea, estertorante. Bruffles e Preocuda se conheceram, se gostaram, e começaram, pasmem, a namorar. E mesmo que essa história não seja nada original, foi no embalo dessas diferenças que ela aconteceu, adoçada e ete

Curtinha...

Logo que tirou os pontos, Adélia pensou: "agora, minha vida vai começar!" Mas não foi bem isso que aconteceu. ........................... Três meses após a morte da esposa, Adolfo sentiu que já estava perdoado. E partiu pra próxima. ........................... Adolfo mostrou ser muito bom de cama. E Adélia chegou a pensar se não era o caso de fazer outra plástica. ........................... No dia do casamento, Adélia era um só sorriso - de êxtase. Mas Adolfo só pensava nas cicatrizes.

Você

Entre uma coisa e outra. Você. Entre a escova de dentes e a cama. Entre o sorriso meio forçado e o momento de desespero. Entre a notícia na internet e o e-mail esperado. Entre o susto e o grito. No meio da rua. Entre os lençóis. No lento desdobrar das minhas pernas. No gole de água à noite. No sono em vôo. No suspiro. No tédio. No gozo solitário. Na fuga. Entre o segredo e a confissão. Você. Entre um almoço e outro. E na hora longa do jantar. Entre meias de seda e de algodão. Nas dobras do meu pijama. Em cada uma das minhas camisas. Nos tecidos suaves e duros. Na pele que vai ficando cansada. Nos meus olhos. Nos meus trejeitos de corpo e voz e gestos. Na sala escura do cinema. Em cada um dos meus trinta e quase cinco anos. Entre as pessoas que se foram e as que virão. Entre sua boca e a minha. Você. Entre uma delícia e outra. Nossa fome. Entre seus olhos e os meus. Um lapso. Entre rios e mares e tempestades. Somente você. Entre uma coisa e outra. Sua presença. Fortíssima, indócil, inde

Teoria do Encontro I

O encontro é um desassossego. Inevitável. Na confusão de olhares e gestos - um sempre escapa. Ilimitado. O encontro é desavisado e inóspito. Inatingível. Entre duas coisas, uma ponte se faz em desmedida e risco. E rapidamente some. Abrupta e leve como uma concha, como um grito, como um pássaro em queda. Entre dois corpos, Eros desenha e destina desatinos. Nem sempre é fácil, nem sempre é fluido. Mas é sempre impressionante. Cuspe, suor, esperma, mijo, medo, nada. Músculos. O encontro é de fazer sentido. Mas não faz. O encontro é de fazer navios. Às vezes cria desertos. Às vezes funde alegrias. O encontro é no íntimo dentro, mas só acontece quando o fora se abre, inesperado. Como uma boca aberta. Tudo isso pode trazer o encontro. Uma dúvida que você nunca teve. Um espelho que de repente se move. Um carro que se afasta. Uma turbulência. Um elogio. Um golpe. Tudo isso pode trazer o encontro. Consigo mesmo. E com o outro. Com o outro de mim. Com o outro do outro. Com o outro do Nós. O out

A vida secreta dos motores

Ilustra de Steve Scott Juvenal nunca tivera certeza se sua vida não valia nada, ou se valia pelo menos um pouco. Ele não tinha amigos, nem mulher, nem filho, mas tinha um emprego que lhe ocupava metade do tempo, e um boteco na esquina de casa que ocupava a outra metade. Juvenal montava motores o dia todo. Esse era o seu trabalho. Não valia muito no mundo dos homens, mas valia bastante na vida de Juvenal. Ele sabia que seus motores iam um dia impulsionar máquinas alheias, metódicas, melódicas, esotéricas, cujo exaustivo trabalho poderia tornar mais leve a vida de alguém, a vida das nuvens, a vida do mundo. Juvenal imaginava liquidificadores que voavam para dentro, misturando sentimentos variados e fazendo a angústia ficar toda menor. Juvenal criava máquinas de lavar idéias, quando elas ficavam muito sujas e incômodas de tanto se repetir. Juvenal produzia cortadores de legumes mágicos, que multiplicavam no lugar de dividir. Juvenal inventava torradeiras cósmicas, que diziam quando

Outro rio no meio

Menina, querida, aprenda, nada há que possa ser feito agora. O amor se foi, eu sei, mas isso é coisa dele mesmo - moço arredio. O futuro se foi, eu sei, mas isso é próprio dos fantasmas de sempre. A saudade foi embora, não volta, outras coisas farão mais sentido agora. O corpo está partido, é claro; mas não se preocupe, as ataduras estão firmes por enquanto. Menina, criança, ouça-me, as portas são mais bonitas abertas. A fuga é oblíqua e é pronta, mas não é um erro, é uma ponte que sobe. Meu modo de ser no escuro é como o seu, não pode ter nomes, nem paciências. Se estiver cansado, escapa liso como as lâminas da correnteza, funde-se no mundo, explode urgente em tremedeiras. Tudo o que sei é o que eu te conto, o que te ensino, os lábios trêmulos de ardores antigos: sei que nossa pele está seca, porque é inverno agora e o frio se expande. Se o tempo do gesto por perfeito, em breve estaremos em casa, adoçadas pelo mesmo amor errante que ora se despede espantado. É frio, eu sei, e temos fo

A menina e o mar

Para meu pai, em seus 71 anos. Como nasci e vivi em Recife até os 4 anos, o mar não era exatamente uma novidade pra mim. Todos os dias, alguém (pai, mãe, babá) me levava bem cedo pra dar uma passeadinha pela praia, seja pra brincar entre as poças d´água que se formavam com a maré baixa, seja pra rodopiar por ali por lá por tudo, tarefa infantil das mais importantes e produtivas, como se sabe. Tudo aquilo era muito bem aprendido com a febre dos meus dois, três anos; um tudo que me faria-faz falta nessa minha vida de montanhas mineiras: areia cantante, ar aberto, barulho de onda e guarda-sol. Como os três anos não são exatamente altos, e como, na maré baixa, os arrecifes de Recife cuidam de proteger a boa viagem dos que por ali andam, eu só sabia do mar como uma espécie de lago dourado e verde, do seu limite de pedras, esponjosas pedras brilhantes de água e sal e luz. Nos finais de semana, a praia demorava mais, com direito a ter meu pai mais tempo por perto, fazendo o nada que os adulto

...

"Por esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de idéia e saudade de coração... Ah." Guimarães Rosa (GSV)

Sim.

Sim, meu amor, eu estou aqui. Eu estarei sempre aqui. Pro que der e vier. Na saúde e na doença. E em seus intervalos. Na alegria e na tristeza. E quando vierem os amigos. No tédio e no abandono. E quando tudo for insuportável. Na miséria e no repouso. E no meio da rua. Na esquina e no silêncio. E no domingo à tarde. Na hora do almoço. Na hora do banho. Na virada do tempo. No resfriado. Na ressaca e na bebedeira. Na saideira. Nas estréias de cinema. Nas estradas empoeiradas de minas. Nos aeroportos que ainda conheceremos. Na nossa primeira viagem de avião. E de navio. No futuro. No tempo desobrigado do futuro, onde podemos sonhar sem ser vistas. No fio do tempo. No espelho de água. No grito de socorro. Nos nossos sobrinhos. No espanto. Na dor de te perder. E de tentar te reconquistar. Na chuva e no sol e nos labirintos da mente. No outono e nos dias frios de inverno. Em silêncio, te vendo crescer, como uma nuvem que expande seus calafrios pelo céu de outubro. Como uma música leve, que f

Longe, muito longe...

Corinne Homenagem a Edward Hopper Clark et Pougnaud O que era casa, transforma-se rapidamente em distância. O mundo perde as beiradas. É inverno de novo. E de novo, no caminho, há portas demais. E janelas desencontradas. E alçapões, e escadas, e porões, e trincheiras. Ando cada vez mais sozinha, o riso quebradiço, partido no meio. A espera em forma de espanto, o corpo denso, contando as horas para dormir, afundar em sonhos, em sono, em disforme semeadura, em planta aquosa e verde. Foi preciso voltar sobre os passos. Reencontrar as ruas perdidas. O gelo. A fome. O tempo anda pedregoso. Sólido. Difícil de engolir. Nada mais é o mesmo. E no entanto, eu conheço todas essas praças. Frias paragens. Neblinas. Dizem que, de tempos em tempos, a dor volta, toda inteira. A minha é a mesma e é outra. Toda uma história que finda, que afunda, que afasta. Vai passar, eu sei. Quisera não ter essa sabedoria, não ter sofrido nunca, não ter perdido. E quisera, ainda com mais força, não ter tudo isso de

Pas-de-Deux

- Sempre quis escrever um diálogo... - E por que não escreve? - Só consigo conversar comigo mesmo. - E daí?! Escreve isso, então. - Conversar consigo mesmo não é diálogo. - É sim. - Não acho, não. Num diálogo, é bom que se vejam as diferenças entre as pessoas. Os modos de impasse. - Pois é, mas você mesmo não é assim tão coeso que não haja partes de você que não possam brigar umas com as outras. - Não é brigar. - Tá, dialogar. - Mas eu ainda não entendi como eu poderia fazer isso... - Ok, tipo assim, uma parte de você ama, a outra não sabe se é aquilo mesmo, uma parte ode... - Isso é muito manjado. - E qual é o problema? - Eu queria fazer um diálogo mais criativo, sabe? Uma conversa que ninguém teve com ninguém. Uma conversa entre dois seres que jamais poderiam se comunicar. - E você acha que isso não existe em você? - Dois seres que não se comunicam? - É. - Não sei, eu teria que pensar mais a respeito. -Viu?!!! - Vi o quê? - Isso que você falou! - O quê? - Ué, se você vai pensar mais