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Mostrando postagens de outubro, 2007

Outro Ulisses e Outras Sereias

Na venda tinha de tudo. Até coisas de beleza e de limpeza. E de comida. Coisas muitas, variadas. Embelezadas umas pelas companhias das outras assim todas juntas em quantidade. Em variedade. Em teórica limpeza. Em anonimato. Ficavam ali esperando a gente. Disponíveis. Datadas, carimbadas, especificadas, controladas, repassadas, qualificadas. Inertes na prateleira e se movendo na cabeça da gente. Ótimas. Refesteladas nas prateleiras. E tinha facas também, a venda. Tinha faca de todo jeito. Facas para comer e para passar patê. Facas para pegar peixe e pegar bicho. Facas brilhantes e foscas. Facas de caça, de pesca, de morte. Facas para enfiar no outro e para enfiar no olho. Facas de cirurgião e de colocar embaixo do colchão. Facas de crime e facas de paz. Facas cantantes, sedutoras, afinadas. E afiadas. E tinha também, logo atrás do balcão, uma vendedora dessas de sempre e de nunca mais vou te ver. Era assim miúda, com a cara redonda de menina nova. Bochechuda, meio suja da poeira eterna

Despedida para Paulo.

Um dos meus primeiros amores... Em sua última peça (O Avarento)... A indesejada das gentes (1) , chegou cedo demais, não encontrou nada arrumado, nem mesa posta. Mas, ainda assim, o ator soube dizer: - Alô, Iniludível! E ainda achou um jeito, de virar de cambalhota, e de cair de costas, na coxia sem pernas do Invisível. De onde observa, sem tréguas, nosso teatro emudecido. (1) Do poema Consoada , de Manuel Bandeira.

Non! Je ne regrette rien...

Não, não me arrependo... De não ter ouvido mais a Môme Piaf, De não ter ouvido alguns conselhos, De não ter terminado Os Sertões, De ter me orgulhado por tão pouco. De não ter aprendido a tocar piano, De ter me deixado enganar por idiotas, De ter aprendido a sofrer, De não ter me deixado afogar. De não ter beijado (mais) algumas pessoas, E de ter beijado outras, De ter me esquecido de tantas coisas - boas e más, E de não ter me esquecido de outras, De não ter ainda aprendido a perdoar, E de ter falado (quase) sempre a verdade. Inclusive a respeito de arrependimentos.

Um dia ou dois.

Fotos de Ana Elisa Novais [minha fotógrafa predileta] No silêncio de domingo, o pai espera o filho no ponto. Na esquina da avenida, a moto desafina e derrapa. Os adultos brindam seus copos, alheios ao cozinheiro que saiu mais cedo. Na padaria acordada, tremem os vidros de geléia. No próximo telefonema, tudo será combinado. No espelho da farmácia, vemos a sombra de um rosto. Um pedaço de céu esquálido acontece em um beiral sem pombos. A tinta nova do prédio seca devagar e amarela. O mendigo segura as pernas, pra não cair na calçada. Os olhos estão enxutos, mas o coração pesa desastres. Há armas debaixo das roupas naquela casa alugada. O filme foi feito às pressas, mas trouxe muito dinheiro. Os canos enferrujados cantam sozinhos no escuro. As plantas crescem redondas, o vestido já está engomado. Há feridos no acidente, mas não se sabe se houve mortos. O chefe se vinga, o padre semeia, o espanto esmorece. Nada parece enrugado. Mas eu. Eu às vezes me canso - da ferocidade do mundo.

O futuro em tempos de melancolia

Um dia... seremos feitos da mesma matéria dos pântanos, viscosos e úmidos e descuidados... o que equivale a ser um pouco como os ratos, nervosos e úmidos e farejantes e tímidos... o que não está longe de se parecer com a sinuosidade de algumas febres, e com a complacência de alguns criminosos... Um dia, seremos acuados, e viveremos prisioneiros de um tempo esquivo, onde as azaléias vão nascendo escuras e um céu de aço é corrompido por uma chuva indecisa e apócrifa, cuja densidade de ferro repreende os que ainda pleiteiam alguma esperança, essa dilatada e obesa senhora de pele vítrea. Um dia, seremos todos de branco, acossados pelo encerramento dos tempos e aguçados pelos fantasmas de sempre, e em vão percorreremos as ruas, munidos com espadas de estanho e esquartejando teoremas vibrantes. Um dia, seremos todos mortos, e símbolos de plástico nos comerão a pele, os nervos, os ossos, a fome. Viveremos de fé e raízes, mas nossa memória dividirá segredos com carrascos vestidos de alumínio,

Pesadelo

Sonhei que era você e que seguia o seu piso e que perdia o seu rastro e que comia o seu cheiro e que tomava o seu peso e que lambia seu sono e que teimava no escuro a danação do seu tema e que vertia na pele a provação do seu dia e que colava no rosto a proteção do seu medo e que bramia no tempo a expressão do seu time e que fugia de tudo para olhar o seu sono e que calava na carne a felação de anteontem e que seguia sofrendo a esperança da fome e que seguia vivendo a atenção do silêncio e que sonhando se teme o carisma da sede e que você não se vende nem à custa do nome. Sonhei que era você e que falava depressa e que andava perfeito e que deitava de frente e que passava apertado e que peidava no escuro e que odiava a tangente e que queimava o cigarro e que nadava a corrente do sistema enfrentado e que perdia o cinema e que passava de lado e que corria pra frente no espaço apertado e que sofria ao seu lado a memória da gente e que deitava na cama e comia o seu cheiro e que tomava o se