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Mostrando postagens de dezembro, 2008

Substantivo suicídio

O suicídio de um rato não é igual ao suicídio de um inseto não é igual ao suicídio de um mastro não é igual ao suicídio de um templo não é igual ao suicídio de um resto não é igual ao suicídio de um vício não é igual ao suicídio de um gesto não é igual ao suicídio de um fato não é igual ao suicídio de um tempo não é igual ao suicídio de um vivo não é igual ao suicídio de um morto não é igual mas é suicídio

Até aqui...

Foto de Maybeoctober Encerrar o ano é um recurso muito útil. Todos sabem disso. Há todo um investimento coletivo no sentido de empacotar a memória dos doze meses anteriores, em envelopes bem datados e bem lacrados, e de preparar um ritual cuidadoso de despedida. Afinal, todo espetáculo tem fim. É preciso fechar as cortinas, apagar as luzes e sair de cena. É preciso dobrar os panos, encaixotar as fantasias e tirar a maquiagem. É urgente trancar as portas e deixar tudo pra trás. Pra poder seguir em frente. Uma frente, todos nós sabemos, que é mesmo o meio do mundo. O meio do tempo. O meio de um espaço todo bagunçado, que não tem começo nem fim. Que não tem bordas, que não tem saída nem entrada, que não tem sentido. Mas que continua. Todos sabemos disso, mas isso não chega a ser um problema, porque ninguém quer saber disso. O futuro foi por todos nós traçado e por todos nós será escrito. Ele vai sempre pra frente. Inapelavelmente. O futuro sou eu e você. O futuro é a nova peça que começa.

Depoismente do fim

Aceita. Tudo acaba, escritor. O que é bom dura pouco. Mas não se desespere. As coisas te farão companhia. As memórias, ainda que dispersas ou já dispensadas, podem te perseguir docemente no escuro, amargadas de terem partido. Subrepticiamente. A faca e o queijo. Cá estão. Faça deles e com eles o possível para não sofrer. Não rompa em soluços, não arranque os cabelos. O livro acabou. Não há mais palavras. Mas faça o possível para esquecer isso. É fácil. É só pensar que tudo é feito de água. Tudo mesmo. Água escoante, vibrante suave, contornando os perigos, amolecendo pedras. Águas torrenciais descem do céu. É tarde. Você fracassou, mas as pernas estão inteiras. Andam, adormecem, se estendem. Muito brancas. É cedo para sofrer. É tarde para partir. É hora de desistir. De golpear o ar. ... Mas depois. Ah! Depois você pisca o olho e sorri. O mundo está todo inteiro de novo. A chuva se foi. O cansaço também. É domingo. E a literatura continua.

Narcisistic home

O negócio é o seguinte: talvez a escrita nem comece. Estou em casa. Ou mesmo na rua. A casa é o intervalo para a rua. A casa é o começo da conversa. Daqui, ouço gritos. Moro no centro. O centro da cidade é um estampido. Rumores de todos os tipos. Sonoros, roucos, mudos. Viscosos. Gritos. O tempo todo. É como uma espécie de fábrica. De mugidos e cisternas. De gargalhadas. É como uma espécie de mercado. De fim de sexta-feira. Assovios, apitos, estalos, arranhões. Todo mundo. Algo vibra o tempo todo. Não faço idéia do quê. Bom, está chovendo. Mas não é o barulho da chuva. É atrás da chuva. É atrás do som. Algo que não se escuta nunca. Só agora. Depois do silêncio dos tacos. Antes do elevador. A casa é engraçada . Toda em portas. Um corredor. Algo que se estica. Uma varanda. Portas encardidas. Pedaços de fios. Conexões. Rios antenados espumando ligando controlando. Confirmando. Somos todos muito sozinhos. O lugar do telefone é importante. O espaço da tv. O espaço da fome. Eu não tenho

Soleira

Sentada à beira do sol, como a beira de um riacho, a menina mergulha as pernas na poça escaldante de luz. O resto do corpo esfria na sombra, refrescado em repouso de paz. Do lado de fora, a cidade passa por ela, em lenta progressão anti-cinematográfica. Paquidérmica e grave, escorre em sua modorra de verão. Do lado de dentro, a casa descansa refrigerada. Telhas de barro e louça enxuta. Quem vê, pensa que está tudo parado. Mas não está. Na porta, o polígono luminoso avança pelas pernas da menina, subindo aos poucos em seu erotismo delicado. Os pés já fervem sobre o cimento, joelhos e coxas vão mergulhando devagar na piscina de calor. A essa implacável arremetida da natureza, ela se expande. Cada vez mais lânguida. O corpo amolecido de amor. A febre cada vez mais urgente, ávida, úmida. Entregue. Por fim, já quase exangue, a pele iluminada tem sede - e insiste em fazer sofrer a menina. O suor aumenta seu trabalho, refresca os dedos, o pescoço, a fronte. Os olhos. É tarde, é tarde,