Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de setembro, 2008

Intervalo

Há um modo de ser da esperança que é quase um hiato, um espantado modo de olhar para o mundo, para o tempo, para o desejo. É um modo de ser enviesado, doloroso, quase ritual. É um modo de viver sem pensar no que está perdido, nem no que virá. É um modo de ser meio ao meio. Há momentos de suspensão, e dúvida, em que tudo parece estar tomado de uma luz frouxa de banalidade. Há momentos de lento apodrecimento. Há momentos em que a pele fica mais leve, quase fluida, de tão insossa. Há momentos em que a história parece escoar por dutos rasos, sobrevoando sôfrega a superfície das coisas, esquecendo-se do endurecimento do tempo. Há momentos sem angústia, sem crise, de puro cansaço mórbido, amolecido, dormente. Há momentos em que a vida é lívida espera, quase doce de tão frívola. Há momentos que são como feitos de ar: existem, mas não se pode vê-los, nem tocá-los, nem mesmo recuperar sua memória - vulgarmente pálida, nem trágica nem cômica. Há momentos em que as palavras são sonoras, mas não d

Sem meio termo

Foto de Olinwena Tornar imprevisível a palavra não será uma aprendizagem de liberdade? Gaston Bachelard É por isso que tomo a palavra manhã, e faço dela um sopro de matizes audazes e matreiros. Deliciosos. É por isso que estendo a palavra ímã, e me afogo nela como num ventre gelado e fútil, como num sonho, como num cedro. Como num vértice. É por isso que pretendo que essa cor, a teerã, é tão ou menos feroz do que a do descompasso, do que a da lágrima vencida. Da sinapse venturosa. Do vício. É portanto essa quimera, a verborrágica, que não se finda, nem se vulga, nem se cala. Nem bem nervosa, nem sempre estropiada. Ou fílmica. Nem quando estou triste ou puta da vida. Nem quando estou sem medo. Quase findo. É meio estrábica, meio barroca, meio silábica, meio travessa. Meio um pouco disso tudo. Coitada. Química de venenos e verdugos. Desconexa. Chave de cadeia, mel de reminiscências, mistura insalubre e selvagem. Doses, poliedros, semáforos, desocupâncias. Degenerescências e candelabros.

Fragmento seco

Mas chega de descrevê-la. Ela apenas era. E os principais verbos dessa fábula se parecem com andar. Arranhava na estrada seus calcanhares de pedra. Seus pés rugiam na poeira vaga e vermelha daqueles caminhos nordestes. Ela fazia sua dimensão. Ela era toda ausente. Ela era uma mulher com uma lata. A lata brilhava ao sol. A mulher não.

Como fazer seu amor amar você em 12 lições...

Foto de MicroAbi 1: Roube umas estrelas pra ele. Amores amam estrelas. 2: Quando for entregar as estrelas, não se esqueça de embrulhá-las em papel de seda azul. O dourado delas vai ficar todo encantado. 3: Quando for suspirar, prenda a respiração por 7 segundos exatos. E envie durante esses 7 segundos 7 trilhões de saudades para o coração delicado do seu amor. 4: Quando acordar, feche os olhos do sonho com um beijo de boa noite. Sempre funciona. 5: Ande de olhos fechados pelo território do segredo. Se você não resistir e abri-los, finja que não é com você. 6: Quando for dormir, cumprimente seus sonhos entusiasticamente. Afinal, são eles os responsáveis pela movimentação inteira da terra em torno do seu amor. 7: Leve sempre pão e vinho para seu amor. Não o deixe perecer por falta de alento. Nem por falta de alegrias. 8: Toque seu amor com dedos de orvalho e de tempestade. A luminescência convém com a paixão. 9: Ao olhar para ele, cubra-o de calafrios. A pele é sempre nova para suavidad

Diariamente

Nos últimos dias do tempo dessa semana que passou passei por mim e não vi segredo bom que ficou fiz projetos, fiz cenários, fiz suspiros acordei toda acesa, matizada roupas coloridas, brigadeiros, capelas douradas, coroas, vestidos que chegam, poemas, histórias de criança, envelopes ganhei sorriso doce e mensagem atrevida de uma e uma recusa muito delicada de outra o sorriso dela, os olhos um jeito de andar meio intrépido a linha curva do nariz um rosto querido um tom do suave mistério desse tempo que é memória e escrita e silêncio eu tomo medo, tomo tento, tomo cuidado mas não tomo jeito sou toda entregue

Ouro de mina

De herança herdada, boca, olhos, pele, estatura, sou uma parte e um todo. Indecifrável. De herança transmitida, fala, olhar, tensão, postura, sou artesã rebelde e rouca, cada dia uma parte, cada dia um todo, cada dia um parto. Rasurável. Herdei olhos claros, mas recuso sua tristeza, mãe. Sua melancolia. Herdei dedos longos, mas os meus procuram mais as carícias. Eu tenho fome, pai, por isso rejeito sua herança de ferro, de contenção, de controle. Herdei lábios finos, mas falo por eles como quem sofre, e pede, e recusa a morte, o tempo que acaba, a reserva. Tenho-os ávidos, loucos, irascíveis, intermináveis. Indivisos. Sou pequenina de um modo estranho, porque me sinto breve sobre a terra interminável do tempo. Meu corpo se espalha, lúcido e livre, sobre tormentosas fronteiras. São histórias inacabáveis, que me alongam desde o nordeste, de onde vim, e me expandem em sulistas memórias - frio, deserto, tempestades. Nascimentos. Herdei o mar e sua vastitude. Herdei a planície de araucárias

Um sopro

Na macia noite, procuro um poema, para dizer o inaudível, Ou o ainda não dito. Mas os poemas fogem, ou não existem, talvez nem mesmo caibam, ou persigam, pontos de fuga, sistemas, calafrios. Então me debruço inconteste, naquilo que consigo fazer, contaminar, exercer, dominar: dizer ao poema, que diga, que voe, que vague, que explore, que vá até ela, e advogue, em favor de mim, ou do que seja; e do que em mim fala, como um navio, como um espanto, como um respaldo, de tudo que em mim é deriva, e desejo, e desastre, que ele diga tudo. E que eu enfim me cale.