
...Since feeling is first
who pays any attention
to the syntax of things
will never wholly kiss you...
E E Cummings
A compreensão correta
de uma coisa e a má compreensão
dessa mesma coisa
não se excluem
completamente.
Kafka
Guimarães Rosa começa: professor é aquele que, de repente, aprende.
Eu vou continuando: professor é aquele que, de repente, desaprende.
Eu tenho desaprendido. Eu tenho aprendido a desaprender. E tenho aprendido a sinceramente acreditar. Que o outro aprende sim. Mas não sou eu que ensino. Somos nós que entramos em um estado de contato. E alguma coisa acontece. Uma coisa que continua. Nem sempre pra sempre. Mas continua.
É como orar. Você se entrega a uma coisa maior. E ela de repente acontece. É um estado de amor. E de alegria.
Amor pelo desconhecido. Amor pelo impossível. Sim, porque é impossível ensinar. Impossível transmitir. Mas é possível colocar em movimento. Começar. Encontrar-se com. Tocar. Tornar talvez possível. Tornar o encontro possível.
Tímido, à princípio, mas depois intenso e desatinado golpe.
Lâmina, pedra, faca, risco. Tudo isso também ensina. Isso João Cabral me contou.
Mas também a pluma ensina. O susto. O riso.
Pétala, borboleta, carícia.
Eu tenho desaprendido desde pequena. Eu tenho aprendido a desaprender desde muito tempo.
Desde quando, no pátio do colégio, eu recontava os livros que lia pros colegas que não o tinham feito. E eles tiravam notas melhores que as minhas. E eu de repente aprendia. Sabe-se lá o quê.
Desde quando, ao lado de uma amiga, eu decorava os rios da Ásia, e aprendia os primeiros acordes desse precipício delicioso que é a amizade. E os rios ficavam tão mais bonitos, então...
Desde quando, pela primeira vez, entrei em uma sala de aula como professora, suportando o olhar de muda surpresa dos alunos diante daquele cisco de gente que muito provavelmente não sabia nada.
Eles estavam certos. Eu de nada sabia. E menos ainda sei agora.
Agora que, ano após ano, tenho feito da minha vida um caminho pra esse desconhecido. Esse lugar de encontro que é a sala de aula. Esse lugar de entrega vibrátil, onde a dúvida e a incerteza campeiam firmes, a despeito da aparente serenidade científica da lei, à revelia da superfície cômoda e ordenada das nomenclaturas, das regras, da semântica.
Em algum lugar entre a episteme e a lógica, ela está. A dúvida. Em algum lugar entre a pedagogia e a clínica. Somewhere, over the rainbow. Entre o sujeito e o verbo. Entre hipóteses e teoremas. Números imaginários: os mais bonitos.
Entre trigonometria e álgebra. É lá que ela está. A incerteza. Entre hexágonos e carboidratos. Os mapas da fome. As fadas que tinham idéias. O ponto de fuga. A épura.
É dela – da dúvida - que nos alimentamos. Toda a ciência. Tudo o que chamamos de compreensão. De conhecimento. De sabedoria. E que não passa de um desejo. Um desejo de conquistar. De dar nomes. De simplesmente ter.
Mas é depois, ou no meio, desse desejo, que a desconfiança mora.
E quem, como eu, caminha nesse deserto fecundo, aprende a confiar na desconfiança. E a desconfiar das certezas.
Eu fui aprendendo a desnomear. A des-saber. A desordenar. A gostar do inclassificável, do inabordável, do inacessível.
Porque, de repente, com meus muitos (mas nem tantos) alunos, aprendi que a vida é assim mesmo. Desordenada, inumerável, imprevisível.
Imensa.
Com cada um dos meus entretantos alunos, fui descobrir que a vida dentro de uma sala de aula fica ainda maior. Mais bonita, porque mais indomesticada. Feita, tecida, preenchida e habitada por um universo todo inteiro e todo novo - construído com tudo aquilo que não sabemos.
E que, convenhamos, é muita coisa.
Comentários
Não seria este blog uma sala de aula¿(gostei desse símbolo, saiu sem querer e vai ficar. Deve ser o imprevisível, do qual você falava... hehe)
beijos!
parabéns pra você!
eu, que penso ser professor universitário em breve (seguindo os passos da amada) acabo de reforçar a idéia.
Vim parar direto aqui, através do seu comentário lá no post da Mary W. Lindo mesmo que você escreveu e começando com um dos mestres, o Guimarães. Vou vir mais vezes ok?
sayonara
Madoka
Beijos,
Clau
Que lindo seu texto. Tbm sou professora e tenho dentrod e mim esse pouco do desaprender diário. Amei seu texto, achei lindo mesmo. Tbm escrevi algo no meu; não tão lindo como o seu post... e tbm deixei seu link no meu blog, afinal fiquei encantada com td que li aqui.
beijos
Adoro quando vcs vêm por aqui! Presenças tão queridas e tão bem vindas...
André, estou torcendo pra vc! Essa carreira é tão bonita... cheia de percalços, né, mas qual não é?
Madoka, volte sempre mesmo! ; )
E Clau, vc foi uma de minhas mestres, vc sabe, né?!
Vanesa, obrigada pelos elogios e pelo carinho! Depois vou lá te visitar na sua "casinha blogueira"... rsrsrsrs!
E André, querido, só o que não aprendo mesmo é a viver sem você... que saudades...
Vc é que é over the rainbow!!!