Quando encontramos uma pessoal “mal
educada” por aí, normalmente pensamos na falta de educação familiar (também
conhecida popularmente como “pai e mãe”). Também é comum, quando conhecemos a
família da pessoa em questão (e reconhecemos que a falta não vem dali), que
pensemos na educação escolar propriamente dita, e nas possíveis lacunas que
essa (má) educação possa ter infligido ao indivíduo mal educado em questão. Às
vezes pensamos nas duas coisas, mas raramente pensamos em um “terceiro” fator,
que é, do tripé educacional, o mais complexo: o fator cultural.
Todos nós conhecemos, afinal, pessoas
muito (ou bastante) letradas, educadas em escolas reconhecidas, ou de
referência, com famílias também educadas e pais igualmente bem “formados”, que
são, sabe lá Deus por que, verdadeiros colossos de ignorância, falta de
sensibilidade para com o próximo e civilidade tacanha, se não inexistente.
Também não é difícil encontrar o
contrário, pessoas que, mesmo sem ter recebido da escola ou da família o mínimo
de "verniz" (a linguagem popular escancara como, muitas e muitas
vezes, a educação pode ser superficial...), esbanjam refinada delicadeza,
atenção ao outro, gentileza, senso do comum e do compartilhado.
Esses casos parecem, quando os
encontramos, bastante estranhos, mas só o são porque esquecemos do fator
cultural - esse "terceiro" elemento tão importante quanto os outros
dois. Também esquecemos de algo ainda mais sutil e difícil de mapear: a
interação complexa entre esses 3 fatores.
Em outras palavras, a educação
"completa" (se é que isso existe) depende necessariamente de 3
fatores complexos, totalmente interligados e interdependentes, que se
retroalimentam, contradizem e anulam - O TEMPO TODO.
Para não complicar muito, vou dar
apenas alguns exemplos.
1: Não adianta muito ter mãe e pai
feministas (o que já é raro) e viver em uma sociedade regida pelo
falocentrismo. Mesmo que a pessoa frequente boas escolas, e tenha tido algumas
professoras e professores alertando para a questão, é o cotidiano que vai
reforçar a (má) educação machista: via macro-discursos disseminados no tecido
cultural (tv, igreja, rádio, internet, revistas, publicidade, etc.), mas também
via micro-discursos, ainda mais difíceis de registrar e/ou contestar (papos de
boteco, exemplos de amigos, tios, avós, colegas, conversas de corredor no
trabalho, piadas de elevador, etc.). Nem vou entrar aqui nas questões
simbólicas sutis, nos micro-machismos, na falta de representação feminina em
toda parte (na arte, na literatura, cinema, etc.). Em suma, será preciso, pra
essa pessoa criada por pais feministas, muita resistência e atenção. Caso
contrário, tudo o que tiver aprendido com eles se dissolverá, re-significado
pela acumulação impiedosa de toda uma miríade de "lições" machistas
cotidianas. Resultado? Uma pessoa (mulher ou homem) que não respeita as
mulheres, que é desrespeitosa com elas, que não as ouve ou aceita, que é, em
resumo "mal educada" nesse sentido.
2: Isso vale, é claro, para a forma
como um indivíduo lida com indivíduos de outras raças, credos, inclinações
sexuais, etc. Mesmo vindo de uma família mais aberta (o que não é comum) e/ou
mesmo tendo vindo de uma escola que tenha se preocupado em trabalhar essas
questões (o que raramente é uma iniciativa da escola como um todo, senão apenas
de alguns professores), o massacre cotidiano de racismo, homofobia e
desrespeito a diferenças religiosas que vemos em toda parte já bastaria pra
"desencaminhar" muitos indivíduos. Resultado? Uma pessoa que não
respeita as diferenças, que é desrespeitosa com elas, que nem sequer quer saber
se elas existem, que é, em resumo "mal educada" nesse sentido.
Exemplos? Bichas machistas, negros homofóbicos, mulheres racistas, evangélicos
contra o candomblé, etc. - e vice-versa. Todos conhecemos "mal
educados" desse tipo.
3: Isso vale, é claro, para a forma
como cada indivíduo lida com a questão social. Mesmo que a educação "de
base" seja bem feita, por pais de qualquer classe preocupados com as
demais, especialmente as menos favorecidas, dispostos a diminuir as diferenças
ou pelo menos a pensar sobre elas (idem para a escola), o fato de vivermos em
uma sociedade extremamente desigual, injusta e perversa, e o fato, mais
dramático ainda, de termos que sobreviver nela e a partir dela, acaba, ou
acabará, por nos deixar cada vez menos críticos e indignados, se não imunes a
essas diferenças, ou totalmente alienados, quando não francamente
desrespeitosos para com o outro menos favorecido. E dá-lhe tratar mal o garçom,
a ascensorista, a moça do caixa, o taxista, o porteiro, a frentista...
4: Isso vale, ainda, para muitas
outras questões e "divergências" de toda ordem: políticas,
ideológicas, de esporte, etc. O que adianta os pais e as escolas nos ensinarem
a respeitar as diferenças, se em toda parte se prega o ódio ao inimigo, seu aniquilamento,
sua morte? Como pregar a paz, se (quase) todas as religiões nos ensinam a
guerra? Como confiar no outro, se a desconfiança é ensinada em cada esquina?
Como aprender a amar, se só o ódio é ensinado? (vide momento atual...)
Não posso afirmar que esse terceiro
item - o cultural - seja mais forte que os outros dois, mas ele realiza uma
educação mais continuada, mais permanente, mais dissolvida em tudo o que não
parece "educação" (das piadas de boteco às revistinhas pornôs). A
educação cultural é mais sutil, e portanto menos sujeita a ser recebida com
resistência, com "preguiça" (quem não se surpreendeu fazendo, graças
à sugestão de um colega, exatamente o que a mãe/professora tinha pedido pra
fazer?).
O que é mais efetivo? Não jogar lixo
na rua porque a professora mandou ou não jogar porque "ninguém" joga,
ou porque o chão está limpo? (É muito comum, por exemplo, brasileiros serem
mais "limpinhos" em outros países do que em casa...) O que funciona
mais, não furar fila porque ninguém fura ou porque seu pai dizia pra não fazer
isso (embora fizesse sempre que podia)? Eu respeito mais o que a professora
fala ou o que meu-colega-de-trabalho-que-ganha-mais-que-eu afirma, enquanto
puxa meu saco e paga a minha conta? Eu ouço o pastor, mas não ouço minha
mulher? Eu concordo com o Bonner, mas não com o taxista? Quem me convence mais?
A quem ouvir? Em quem acreditar?
Tudo isso pra dizer que a educação
está em toda parte, mesmo quando aparenta não estar. Nós aprendemos - e
desaprendemos - o tempo todo. Portanto, não adianta empurrar a
"culpa" da má educação generalizada para pais e professores. Somos
TODOS NÓS que educamos, o tempo todo. É a resultante desses três aspectos,
somada, evidentemente, ao modo como cada pessoa vai reagir à inter-relação
entre eles, que vai "formar" cada indivíduo de um modo mais ou menos
egoísta, mais ou menos "grosso", mais ou menos respeitoso para com
seus parceiros de jornada, seja seu chefe ou seu subalterno (que palavra
horrível!), seja sua vizinha de porta que tem um cachorro insuportável ou seja
seu pastor... Seja mona, mina ou mano - é pessoa, merece respeito, escuta,
sorriso, gentileza: boa educação; em suma, civilidade.
Todos sabemos que o exemplo educa mais
que mil palavras. Mil aulas. Mil powerpoints com animações incluídas. O exemplo
tem o poder quase divino da sedução. Assim sendo, pais, mestres, sociedade, se
queremos um mundo melhor, tentemos, também nós, sermos melhores. Se queremos
mais educação, TEMOS que ser mais educados. O pai (quando está presente), a mãe
e os professores não educam sozinhos. Somos todos professores uns dos outros.
Em tempo integral.
Pode parecer difícil, e é mesmo. A
responsabilidade é grande, mas é bonita.
No entanto, pode até ser simples. Como
dizia o Profeta: GENTILEZA GERA GENTILEZA (vale lembrar: honestidade gera
honestidade, respeito gera respeito, etc. (o contrário, infelizmente, também é
verdadeiro: traição gera traição, mentira gera mentira, etc.).
No fundo, é simples assim: escutar,
sorrir, tentar entender. Parece fácil, mas é dificílimo. Por isso entregamos
essa amarga tarefa aos pais e mestres, quando ela é, no fundo, de todos nós.
De tudo, no entanto, resta uma certeza
- estamos juntos nessa. É melhor arregaçar as mangas.
#somostodosprofessores
#somostodosprofessores
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