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Não verás país nenhum



Ando por esses dias como há muito tempo não andava. Estou “inquieta, áspera e desesperançada”, como dizia Clarice. “Embora amor dentro de mim eu tenha”. Choro pelos cantos, tento ler coisas leves, mas a noite vem, como um dia veio, e parece que não consegue sair. Choro por um país, por coisas que ainda não aconteceram, mas certamente acontecerão. Choro por sombras bizarras que se instalaram nos espaços de poder e de lá só sairão se as pessoas acordarem. Mas ninguém parece disposto a isso. Todos dormem, embalados por delírios tragicômicos de personagens que, horror nosso, são infelizmente reais. Reais demais. O mundo está real demais. Ou, pelo menos, real demais pra mim.

A carga é a mesma de sempre, eu sei: sobra estupidez, ignorância e violência. Só que agora tudo isso não vem embalado na velha roupagem de sempre, de falsa tolerância, mentiras suportáveis e uma certa hipocrisia. Não há mais máscaras, não há mais camadas vagamente civilizadas de retórica ou de auto-controle. A imbecilidade está à solta. Despudoradamente livre.

O pão sempre foi caro e a liberdade pequena, mas enquanto houvesse circo, parecia estar tudo bem. Agora um circo de horrores ocupou todos os espaços, inclusive o da liberdade e o do pão. Alimentamo-nos de patetas que entopem os canais de comunicação com suas verborragias obtusas e perigosas. Ora, elas sempre existiram, sabemos disso, mas me parece que agora deixaram de ser cínicas ou perversas ou irônicas para serem simplesmente estúpidas. E cada vez mais violentas.

A banalidade do mal está, querida Hannah Arendt, mais banal do que nunca, mais odiosa, mais escancarada. “Coisa que não acaba no mundo é gente besta e pau seco”, já dizia Manoel de Barros, mas ando com a sensação de que eles dominaram a cena inteira, o cenário todo. A ignorância orgulhosa de si mesma, a falta de empatia, a crueldade e a cobiça estão secando tudo, ocupando tudo, retirando toda a umidade do mundo, toda a doçura, todo o encanto, toda a delicadeza, toda a empatia, toda a poesia.

No fundo, sei que não precisamos de ministérios ou de leis para continuar a fazer arte, poemas, música, cinema. Sei que a mordaça nas escolas não calará os professores e muito menos os alunos. Mas o excesso de muros me entristece, por mais que eu saiba que as pontes continuarão, apesar de tudo. Continuarão, certamente, enquanto houver vida. Mas até mesmo essa vida está ameaçada, como se pode adivinhar a partir das novas políticas ambientais. Que espécie de vida nos espera para além do fim da Floresta Amazônica? Ah, meu caro Ignácio de Loyola Brandão, nunca me vi tão próxima de seu "país nenhum". 

Essa mistura patética de Fahrenheit 451, Handmaid´s Tale, 1984, Black Mirror e Turma do Didi assusta, constrange e desampara, mas, por outro lado, confesso que nunca fiquei tão feliz e aliviada por não ter transmitido a ninguém o legado da nossa miséria.

Filhos que não tive, folgo por vocês não serem obrigados a conhecer o futuro distópico que ora se projeta. E se aplaude.

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