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A moça do caixa

Na fila do supermercado, automatizadas pela luz metálica, marcham lentamente algumas pessoas. Elas têm o olhar ausente de quem percorreu longos caminhos. Têm o olhar duro de quem encontrou muito, mas não o que procurava. Os braços e carrinhos estão cheios de coisas variadas. São caixas coloridas, simpáticas latas de alumínio e pacotes brilhantes de múltiplos tamanhos. Na esteira do caixa, logo mais à frente, essas singelas embalagens, ícones de sobrevivência e fastio, viajam plácidas pela borracha escura.
A fila não anda, escoa. Viscosos e lentos os passos. A menina do caixa é novata e seus gestos rápidos, mas desastrados, mostram que ela se desespera facilmente. A fila cresce, suas mãos tremem. Mas ela não pode parar.
As mercadorias são exibidas, uma a uma, ao espelho da máquina leitora, cuja habilidade em registrar o valor das coisas parece inquestionável. Na fila, atentas e alheias ao ritmo sincopado do desfile e à muda confusão da moça do caixa, as pessoas preocupam-se em exibir sutilmente, ou em esconder o mais que podem, o quanto elas de repente valem. Cada marca, uma sentença.
Produtos vagabundos ou sofisticados alternam-se nas afobadas mãos da garota, adquirindo ali uma vida própria e incômoda: multiplicam suas arestas, torcem-se, amolecem, solidificam-se, caem, desviam-se da luz fatal, recusam-se a mostrar-se, escondem seus códigos, embaralham-se, confundem-se.
Com o tempo, todos sabem que essas mesmas mãos conhecerão o movimento exato que faz ceder cada produto. Eles flutuarão molemente por seus dedos, rápidos e precisos, tendo muito pouco tempo para curtir sua brevíssima coreografia.
Mas, por enquanto, o ritmo é penoso e artificial. A garota perde logo o compasso, povoado de erros. Ora não encontra a caneta, ora esquece o número, ora erra o troco. Está desafinada, ansiosa, urgente. Todos na fila olham para ela, inquietos, um pouco assustados. No entanto, embora haja ali alguma impaciência, os olhares parecem transmitir mais curiosidade do que preguiça. Algo, finalmente, está por acontecer.
Então, correspondendo ao poderoso pedido de tantas almas aflitas, a trêmula moça subitamente se levanta, desvairada e nervosa, torcendo as mãos, os olhos, o corpo todo, em agitado transe. Chama o treinador, aos soluços, pede um intervalo, um descanso, sai quase correndo do caixa, e aos tropeços some no meio da multidão.
Em seu lugar, ela deixa um espanto aturdido na cara de todos. Trocam-se olhares esguios, envergonhados por aquele travo estranho de alegria malvada, por aquele gosto vulgar e perverso pela derrocada alheia. O sistema finalmente descontrolado, a domesticada fúria finalmente livre. Alguma coisa tristemente aconteceu.
Em seu lugar, a moça novata também deixa, além dos pedidos de desculpa do gerente, uma senhora volumosa e sardenta, rápida e feroz, que agilmente toma conta de tudo, imprimindo velocidade e maquinismo àquele pequeno universo linear.
E logo mais, enquanto a fila aguarda, sólida e austera, que um dos clientes finalmente assine seu cheque, o breve acontecimento vai afundando, já esquecido por todos, sob o deslizar implacável das esteiras, sob o rodopiar esférico dos carrinhos, sob a suave organização das prateleiras.

Comentários

Anônimo disse…
Rebs,
Bom acordar e ler um texto seu... delícia! Estarei sempre por aqui!

Beijos carinhosos,

Ritinha
Anônimo disse…
Rebequinha querida,

que delícia que vc resolveu compartilhar seu taleto com o mundo. Adorei o blog e adorei suas densas histórias. Virei sempre te visitar. Bem-vinda à blogolândia!
Anônimo disse…
Resolvi começar a ler de trás para frente, o que, num blog, significa respeitar a sucessão. Não sei se é o melhor, mas é um caminho.
Nos três textos que li, me surpreendi. Não é mais um eu que fala. Antigamente, lembra?, era um eu muito grande, com conflitos, incertezas, tristezas, desejos, tudo muito, tudo em alto grau, tudo intenso.
Dizem que o amadurecimento é diminuir o eu e aumentar o outro, ver o outro, abrir o outro, entrar no outro, porque é lá que o eu se esconde. Nesse novo texto que vi - a crônica, vejam só! - vi um autor maduro, ainda acanhado, é certo, mas muito mais maduro do que aquele eu frenético, típico da juventude que nós vivemos.
Não creio que, nesses anos, eu tenha amadurecido tanto quanto o seu texto. Fiquei feliz então. Feliz principalmente por poder lê-la de vez em quando. Mas vou ler assim, 1 ou 2 por dia, segundo o meu caminho cronológico. Não tenho pressa de chegar no presente. Um pouco de descompasso é sempre bom.
Beijos
Carol

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