Era uma vez um pai que ficou tão nervoso com seu filho, tão magoado e ofendido que afiou uma faca de cozinha, muniu-se de álcool e ódio e armou tocaia no terreiro do casebre onde o filho agora morava, já que o pai o havia expulsado de casa.
Era uma vez um filho que teve tanto desprezo e raiva pelo pai que resolveu matá-lo. Para tanto, roubou de um amigo um 38, amoitou-se na varanda da casa do pai e esperou.
Era uma vez um pai e um filho que vararam juntos uma noite estrelada de inverno. Um esperando pelo outro. O outro esperando pelo um. A noite toda. Horas e horas a fio.
Quando a noite acabou, a raiva grande havia passado, mas não havia mais pai nem filho. Só um desarmado cansaço.
O filho tinha raiva do pai porque este não soube entendê-lo.
O pai tinha raiva do filho porque este não soube honrá-lo.
O filho era homossexual e havia sido surpreendido ao beijar o próprio irmão na boca, nos fundos do quintal.
O pai era sargento da polícia e havia surpreendido o próprio filho beijando o irmão na boca, nos fundos do quintal.
O filho, no susto, fugiu o mais que pôde dos gritos e da provável vingança do pai.
O irmão, de susto, petrificou-se de pavor e recebeu no lombo tantos e tantos golpes que acabou morrendo, a caminho do hospital, que por sinal ficava em outra cidade.
O pai, desesperado, jurou matar aquele que fugira. Tinha que lavar sua honra, sua culpa e sua miséria naquele sangue pesteado. Desgraçado é aquele que envergonha a família, que se desvia do que é certo, que mancha o que é justo, que corrompe o que é puro, que trai, que mente, que suja, que vilipendia!
O filho, desesperado, jurou matar aquele que havia matado seu único amor, sua maior razão de ser, sua delicada beleza nesse mundo: o irmão mais velho, pálido e suave como um pássaro de veludo, de olhos doces e corpo esguio, rápido nos jogos e esperto para defendê-lo de todos os outros meninos, forte nas discussões com o pai, bondoso com a mãe, querido de todos e tão lindo, tão lindo, tão lindo que fazia doer o peito quando a gente olhava mais demorado pra ele. Seus olhos de musgo, ovalados febris. O irmão, bonito que era, devia ter ido pro céu, decerto, mas seria vingado. Desgraçado é aquele que não conhece o amor, que não reconhece o amor, que não entende o amor, que não pode amar o amor!
Era uma vez uma história dupla, com duas misérias, duas esperas, duas vinganças.
Quando a noite acabou, cansados de esperar, esvaziados e exauridos, pai e filho acabaram se cruzando na estradinha que leva ao casebre onde o filho agora morava, já que o pai o havia expulsado de casa.
Era de manhãzinha. A estrada estava deserta, mas não houve mais mortes. Só um vazio cansaço.
O filho não queria mais matar o pai. Seu amor estava morto, nada mais podia ser feito.
O pai não queria mais matar o filho. Sua vida estava acabada e nada que fizesse podia modificar isso.
Não houve, no entanto, perdão. Só uma mudança de planos.
E o desanimado cansaço do desprezo.
O amor é feito de quedas e sustos, de espanto e de silêncios, de trajetórias estranhas e fomes diversas. O amor é feito de cobre. Dura muito, mas muda de cor com o tempo. O amor é feito de pedras aladas, de tristezas ocultas, de sílabas desconexas. O amor é feito de escolhas. Mas algumas dessas escolhas são fatais. Ou fatídicas. O amor às vezes não existe. É feito rio correndo: tem suavidade e orgulho, mas carrega areia e dejetos. O amor também é feito de vento e de geografias. De lutas e reentrâncias. O amor é feito de sede. E de febres.
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P.