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Será mesmo?

Deixe isso pra depois.
Não se preocupe com os muros.
Não vai haver muros.
A terra não tem divisões.
Juan Rulfo
Para sobreviver, é preciso não esquecer da culpa. Do choro, da reza, dos gafanhotos da bíblia.
Que é dos personagens? Ruth, Raquel, Madalena. Estátuas de sal. Mulheres e maçãs vermelhas. Personagens são máscaras elétricas. Estertores singulares. Símbolos castrados, nuvens de gafanhotos ocultando um céu deserto. Demônios aparecem e somem.
É preciso não esquecer que há palácios. É preciso não esquecer que há escadarias que levam a quartos de cartolina e crepom, onde as frutas maduras das mulheres esperam para ser colhidas a tempo. Se não, secam, apavoradas. Portanto, é preciso não esquecer que há sempre frutas maduras apodrecendo de cansaço nas árvores. Sem que ninguém as possa alcançar, sem que elas caiam.
É preciso não esquecer que tudo isso está escrito no livro fétido dos homens. Livros violáceos de sangue e poder. Livros de violação.
É preciso lembrar que há anêmonas urgentes no mar escuro, que não há filosofemas que nos salvem, que há bocas ainda não mordidas e decifradas nos esperando no portão, que há homens sem olhos aguardando o aviso final. Para avançarem sem remissão.
Será mesmo possível continuar? Meu texto é uma porta que se fecha. A página ferida. A garganta trancada pela sede. Como uma cidade para a qual não se pode voltar. Como um incômodo cheio de frases inúteis.
Escrever é uma coisa crua. Sobre palavras líquidas lambendo azulejos mofados. Sobre muros de concreto e ferro empenhados em sufocar. Sobre vísceras femininas dilaceradas por galhos fervorosos, dispostos a mostrar como somos acessíveis.
Por isso escrevo tão em silêncio. O mundo está muito restrito. Há muros em toda parte.
Mas há pontes também. Algumas delas.
Por isso sobrevivemos?

Comentários

Ana Laura disse…
sobrevivemos também pelo tom imprecisamente vermelhado do fimda tarde; pelo sorriso espontaneo e assim meio sem jeito que recebemos numa virada de esquina qualquer; pelo "cheiro" reconhecido na multidão de um corpo que parece ser do nossa exclusiva propriedade; por um ou dois suspiros de saudade....
pree disse…
denso.
bom texto.
Unknown disse…
Ana Laura, vc disse TUDO!

Pree, obrigada! : )

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