Pular para o conteúdo principal

A menina e o cego que não mascava chicletes

Pessoas passavam por mim com suas bundas bolsas bocas encomendas pastéis embrulhos artífícios nuances.
A cidade passava por mim com suas bancas bolhas bancos bicicletas árvores borboletas linhas de tráfego sinais de trânsito placas de pare e pense e conversas pela metade.
Tudo era igualmente diferente na mesma rua (quase) mesma hora mesmo trânsito mesmos ônibus de idênticas cores e números e trajetórias.
Pombos passavam por mim e árvores e pedaços de sombrinhas e malas e até carrinhos de bebês e canteiros.
Tudo ia e voltava e vingava e sofria e partia e repetia e rebolava e suspirava e voava e se voltava para si mesmo como se nada fizesse sentido.
Ou era eu que estava triste pra caralho?
E o cego com sua bengala também ia passando passando passando, se não tivesse, de leve, trombado, e hesitado um pouco, na caixa de correios que amarelava a calçada.
E o cego, com sua bengala, também ia sendo rapidamente esquecido, se não tivesse, de leve, levantado seus olhos para o céu.
E os olhos do cego, com seu globo sulfurado e pastoso, tão impossivelmente pálido e suave, tão povoado de nuances vítreas e longas, violentamente dóceis em sua espessura algodoada e levemente azulada de nuvem, tão espantosamente dizendo de um assombroso espetáculo mudo que ninguém via, e esses olhos então, cuja cor nunca foi vista em algo que não fosse vidro, porque é a sombra móvel do que não está lá mas existe, esses olhos então me ofuscaram de um modo tão insuportavelmente belo
que eu parei imediatamente de chorar,
e me pus a caminho.

Comentários

Anônimo disse…
Caetano disse como é bom poder tocar um instrumento...o seu é a palavra.

clau
Anônimo disse…
Que triste e belo perceber
O que seus olhos percebem
O mesmo que os meus, quando resolvem olhar...
O mundo que não pára e que é tão belo!
A vida que acontece a despeito de tudo e que é tão viva...
E que não pára de acontecer diante da nossa loucura e correria
E ela é tão democrática!!! Chega a irritar...
Que bom te encontrar nas voltas da vida e perceber que você está aí:
Rebecca pura, Rebecca a mesma, Rebecca Viva!
Que outros olhos possam olhar!
Prazer Rebecca em te reencontrar.
Lu Mãe
Anônimo disse…
e como não há forma de registrar suspiros e silêncios;
e como não há forma de registrar as cores das palavras e não o significado delas;
... e como não há outra forma...
obrigada, Rebs.
beijos todos!
Anônimo disse…
Adorei a citação (ind) direta de Clarice e o fecho inesperado.
Anônimo disse…
A menina a caminho e outros textos. :-) Lindo, lindo, Rebecca. Amor é isso aí.
Rebecca M. disse…
O que mais me deixa feliz são os comentários de vocês... E muitos deles tão generosos e lindos que me fazem perder o chão...

Obrigada, queridos.

E Lu Mãe, que surpresa boa! Volte sempre, sempre.
ramilson noronha disse…
olá... adorei! Vamos reconstituir sua rede de vacância.

abraço

Postagens mais visitadas deste blog

Fazendo o balanço...

Em 2007, eu... Fiz novos amigos. Fiz o que pude pra guardar um tempinho para os velhos amigos, tão queridos... mas nem sempre consegui. Trabalhei bastante, mas sonhei ainda mais... Talvez demais. Tive pesadelos, mas acordei com alguém do meu lado... Senti muita falta da minha mãe. E mais ainda do meu pai. Falei a verdade. E me arrependi. Às vezes menti... Redescobri a Edith Piaf... e aprendi mais sobre arrependimentos. Tive muito medo, mas me socorreram a tempo... Saí da natação (mas pretendo voltar, juro!)... E engordei um pouco (eufemismos sempre são úteis). Vi dezenas (ou seriam centenas?) de filmes ótimos... E outros nem tanto... Vi duas peças magníficas! Rubros ... e Atrás dos Olhos das Meninas Sérias (se elas aparecerem em cartaz, corram pra lá!). Perdi a paciência... inúmeras vezes... Chorei de desespero... Mas me acalmei depois. Chorei de alegria - algumas vezes. Descobri o maravilhoso mundo encantado dos blogs... Descobri que toda vez que eu descubro algo novo, eu fico deslu

...

"Por esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de idéia e saudade de coração... Ah." Guimarães Rosa (GSV)

À maneira de Ulrica

Para Silk... Sobre ela, pouco se podia dizer. Dizia-se de sua pele comovente, expansiva em forças. Explosiva ternura. Dizia-se de sua beleza. De seus girassóis. Leveza vibrátil e ardente, tocada pelo fogo, marcada por seu inexaurível mistério. Dizia-se de sua febril intensidade. Seus olhos. Ardorosa meditação sobre a alegria. Dizia-se de sua vibração aquática, humores e fluidos em infatigável doçura. Dizia-se de sua proximidade com os ventos. De sua liberdade cantante de moça do ar. Dizia-se de sua densidade terrestre. Da disposição para o encanto. Das exigências do corpo. Das pernas. Falava-se, sempre e sempre, acerca da conformação sutil de seus quatro elementos. Caleidoscópicos. Sutis neblinares de tímida e rutilante orquestração. Dizia-se que era criança e mulher. E que podia ser encantadoramente nossa em certas noites de lua cheia. Ou quando do encontro de certos tipos de amuletos. E de suspensórios. E mais não se podia dizer. Porque seria sempre muito pouco. Para saber mais sobr