Pular para o conteúdo principal

A vida secreta dos motores

Ilustra de Steve Scott

Juvenal nunca tivera certeza se sua vida não valia nada, ou se valia pelo menos um pouco. Ele não tinha amigos, nem mulher, nem filho, mas tinha um emprego que lhe ocupava metade do tempo, e um boteco na esquina de casa que ocupava a outra metade.
Juvenal montava motores o dia todo. Esse era o seu trabalho. Não valia muito no mundo dos homens, mas valia bastante na vida de Juvenal. Ele sabia que seus motores iam um dia impulsionar máquinas alheias, metódicas, melódicas, esotéricas, cujo exaustivo trabalho poderia tornar mais leve a vida de alguém, a vida das nuvens, a vida do mundo.
Juvenal imaginava liquidificadores que voavam para dentro, misturando sentimentos variados e fazendo a angústia ficar toda menor.
Juvenal criava máquinas de lavar idéias, quando elas ficavam muito sujas e incômodas de tanto se repetir.
Juvenal produzia cortadores de legumes mágicos, que multiplicavam no lugar de dividir.
Juvenal inventava torradeiras cósmicas, que diziam quando chovia em marte e esquentavam a alma quando ela queria chorar.
Os motores de carro feitos por Juvenal levavam os desejos para o seu destino.
Os motores de avião ronronavam quando mudavam de país. E levavam passarinhos tropicais para passear na europa.
Os motores dos tanques emperravam na hora agá, e levavam todos os soldados para outra dimensão.
Os motores de navio trabalhavam dia e noite, pra diminuir a saudade. Pra encontrar pessoas desaparecidas.
Juvenal criava máquinas pra todos os problemas. Pra todas as necessidades. Pra todos os mistérios. Juvenal tomava conta do mundo.
Mas só o que Juvenal não conseguia inventar, era uma máquina que traduzisse pro João Carlos, o chefe da manutenção, tudo o que seus motores poderiam fazer por ele.
João Carlos era muito sozinho também. Como Juvenal. Mas não acreditava em sonho. Nem em amor. Nem em poesia. Nem em máquinas. Nem em nada.
Era por isso. Só por isso, pensava Juvenal, que seus motores não podiam atingi-lo, nem ajudá-lo.
Mas podiam beijá-lo de longe. Pensava Juvenal.
E isso deveria ser suficiente.
Mas não era.

Comentários

Anônimo disse…
Resolvi deixar um pegadinha aqui hoje e agradecer o carinho da indicação daquela texto lindo... eu amei...

estou aqui matutando num texto à altura para te mostrar também! rsrs.

um beijo!
Anônimo disse…
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Unknown disse…
É lindo mesmo, não é? Também adorei... mandei pra minha lista toda.

E já estou esperando seu texto! rsrsrs!

Bjos!
Andy disse…
Eu queria que Juvenal montasse um computador que escrevesse teses de doutorado sozinho. Gostei mesmo foi do liquidificador interno, que destrói nossas angústias. E alguns insistem em dizer que as máquinas são nossas inimigas. Eu adoro máquinas...os homens é que as fazem imperfeitas. Inevitavelmente me lembrei do Chaplin em Tempos Modernos. Será que um dia seremos engolidos pelas máquinas? Beijos Rebs...André
Unknown disse…
Dedé, eu espero que cada um de nós seja, pela menos um dia, engolido por máquinas como as do juvenal... máquinas de poesia...
Anônimo disse…
Que lindo que vc escreve!! Aquele texto SIM tb maraviloso, todos são.
Amei amei.
Andy disse…
Pois é minha Hard Candy preferida...vai "intendê" as máquinas. Lembra que o meu computador, assim do nada, não permitia que eu lhe deixasse mensagens no blog? Pois é...resolveu deixar. Vou te dizer que minhas máquinas preferidas são, por razões óbvias, O Freezer, A Geladeira e O Forno de Microondas. E viva o século XXI. Amém. André, o americanófilo.
Unknown disse…
André, o Juvenal me disse que ia fazer freezers que distribuem picolés e suspiros, geladeiras grávidas de delícias musicais e fornos de microondas que derretem calorias, as resistentes e as ocasionais... Só pra vc, meu amor americano!

E Fal, é uma honra tão grande ter você por aqui... agora eu é que estou besta!

Que bom que gostou... fico mais do que feliz! Fico felicíssima!
Unknown disse…
Fal,

O texto aí de cima que a marina está falando... calha de ser justamente o seu!

rsrsrsrs!
Anônimo disse…
Rebecca, não te conheço.
Nem você a mim.
Com licença.
Acabei de descobrir seu blog.
Estou lendo todo, torcendo para que não acabe nunca.
Permita-me.
Não tenho um blog.
Não tenho coragem.
A maioria dos meus textos ainda "è" dentro de mim.
Tenho medo.
Meus textos são o reflexo do meu avesso.
Tenho medo do meu avesso.
Então, fui lendo todos os seus. Textos.
O reflexo do avesso dos outros me ajuda a ter menos medo do meu. Avesso.
Parei em um.
Impossível prosseguir depois do que ele me causou.
Pesadelo.É o nome dele.
Mas vim comentar nesse. Texto.
Com medo de que você não lesse. Com medo da proporção que o meu medo pode tomar.
Acredito e desacredito em tudo e em nada.
E li o seu pesadelo. Acordada.
E acreditei desacreditando. E vice-versa.
Que você, por algum motivo.
Que você, por motivo algum.
Conseguiu (d)escrever o meu momento.
Com perfeição.
Com precisão.
Fiquei apavorada.
Fiquei tímida.
Fiquei achando loucura.
Falar com você. Não te conheço.
Mas preciso dizer.
Pelo menos pra você saber.
Mesmo que isso não te sirva pra nada.
Obrigada.
Unknown disse…
Anônima,

esse "medo da proporção que o nosso medo pode tomar" é o que mais temo nesse mundo... talvez seja isso mesmo que me faz ter a coragem de ter medo... porque as coisas nunca acabam de se derramar umas nas outras, como vc disse tão bem... Crédito e descrétido, sonho e despertar, avessos e reflexos...

Também não te conheço, mas já estamos de algum modo próximas...

Obrigada por isso também!

Postagens mais visitadas deste blog

Fazendo o balanço...

Em 2007, eu... Fiz novos amigos. Fiz o que pude pra guardar um tempinho para os velhos amigos, tão queridos... mas nem sempre consegui. Trabalhei bastante, mas sonhei ainda mais... Talvez demais. Tive pesadelos, mas acordei com alguém do meu lado... Senti muita falta da minha mãe. E mais ainda do meu pai. Falei a verdade. E me arrependi. Às vezes menti... Redescobri a Edith Piaf... e aprendi mais sobre arrependimentos. Tive muito medo, mas me socorreram a tempo... Saí da natação (mas pretendo voltar, juro!)... E engordei um pouco (eufemismos sempre são úteis). Vi dezenas (ou seriam centenas?) de filmes ótimos... E outros nem tanto... Vi duas peças magníficas! Rubros ... e Atrás dos Olhos das Meninas Sérias (se elas aparecerem em cartaz, corram pra lá!). Perdi a paciência... inúmeras vezes... Chorei de desespero... Mas me acalmei depois. Chorei de alegria - algumas vezes. Descobri o maravilhoso mundo encantado dos blogs... Descobri que toda vez que eu descubro algo novo, eu fico deslu

...

"Por esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de idéia e saudade de coração... Ah." Guimarães Rosa (GSV)

À maneira de Ulrica

Para Silk... Sobre ela, pouco se podia dizer. Dizia-se de sua pele comovente, expansiva em forças. Explosiva ternura. Dizia-se de sua beleza. De seus girassóis. Leveza vibrátil e ardente, tocada pelo fogo, marcada por seu inexaurível mistério. Dizia-se de sua febril intensidade. Seus olhos. Ardorosa meditação sobre a alegria. Dizia-se de sua vibração aquática, humores e fluidos em infatigável doçura. Dizia-se de sua proximidade com os ventos. De sua liberdade cantante de moça do ar. Dizia-se de sua densidade terrestre. Da disposição para o encanto. Das exigências do corpo. Das pernas. Falava-se, sempre e sempre, acerca da conformação sutil de seus quatro elementos. Caleidoscópicos. Sutis neblinares de tímida e rutilante orquestração. Dizia-se que era criança e mulher. E que podia ser encantadoramente nossa em certas noites de lua cheia. Ou quando do encontro de certos tipos de amuletos. E de suspensórios. E mais não se podia dizer. Porque seria sempre muito pouco. Para saber mais sobr