Ilustração: Anna Cunha
Uma vez, sonhei: uma bicicleta feita de acasos, de terra, de pedaços de coisas, de sinopses.
O sonho era cheio de vertigens, de bicicletas, evidentemente, de modos de colher água da chuva, de fazer as pessoas voarem, de cobrir a terra de um modo abrupto, de coisas assim esquisitas e impronunciáveis.
Quando acordei, anotei tudo num papel. Depois o perdi.
Hoje achei o papel, e não entendi nada. Na lembrança, uma vaga ideia. Uma concreta palavra: bicicletas. Só lembro, de forma absurda e profunda, que havia bicicletas.
Aliás, sonho muito com elas. É a única coisa, afinal, que sei dirigir. Mas sonho com carros também. E não sei dirigir carros.
Essa coisa do interior e do exterior. Uma bagunça.
Alguns objetos podem ser sujeitos. Isso se sabe.
Objetujeitos. Algo assim.
Mas, no meio da ideia, algo surge, se fragmenta, se isola. Como numa experiência científica ou amorosa.
Como num convite pra tomar um chá, ou participar de uma festa. Algo se nutre e se consola do abismo que somos. Algo fica enfim inventariado. Objetificado. Impossível.
Algo fica, ou volta, ou vai embora pra sempre. Aliás, o que mais acontece é coisas irem embora pra sempre. Triste isso, não?
Faço coleções de coleções. Isso me alivia um pouco. Como toda coleção é incompleta, as minhas já começam pelo fim. Ficam incomeçadas. Um único objeto faz uma coleção? Eu acho que sim.
Então, posso fazer uma coleção de objetos que são duplos: como escova e pasta. Ou triplos, como colher, faca e garfo.
Essa coisa do insondável e do concreto. Algumas coisas se juntam, outras não. É assim.
Os objetos são pontos de passagem.
Como essa bicicleta aí do sonho. Uma vertigem.
Não é?
Pois então.
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