Pular para o conteúdo principal

Respondo sempre igual...

É difícil dizer como começam as coisas que nunca começaram, que sempre estiveram lá. Ou aqui, por exemplo. Como aquele modo seu de dizer que gosta de mim, como as roupas secando no varal, como os lugares de cada coisa nas estantes, nas gavetas, nos armários. Há coisas que parecem tão eternas no fim de uma noite de verão quanto um lapso entre um espanto e outro, entre um grito e um plano de viagem. No verão, tudo parece mais estático, até eu mesma, que prossigo entre os cômodos me fingindo de suave, de esplêndida, cantando baixinho ou repetindo que estou viva. Apesar do calor, e das ondas de tédio e asfalto que vêm de fora, estou viva, por enquanto.

É difícil dizer como começou isso, ficar viva. Sentir-se dentro e fora das coisas. Sentir-se apenas. Como as colheres no escorredor, como as paredes que escurecem aos poucos, como os livros cruamente organizados e sólidos. É difícil dizer do tempo em um dia tão quente e áspero. É difícil porque sufoca sem sofrimento. É como esperar, apenas. Que tudo isso passe e seja vulgarmente amanhã.

É difícil entender que logo será amanhã, quando hoje é tão hoje que cansa. No fundo, fingimos que acreditamos no mundo, para que ele possa de fato existir. Inteiramente normal. E por isso mesmo um pouco enviesado, um pouco ao meio. Como quem sabe que falseia, que finge de morto ou cai sentado, como quem salta pela janela gritando, porque cansou de tudo e a noite é quente. Tudo é muito etecétera.

Mesmo assim, vamos à feira amanhã, lançamos livros, escrevemos cartas, compramos passagens, digerimos a carne e esquecemos o sangue. Porque é natal, esquecemos principalmente o sangue.

E fica mais fácil achar tudo difícil. Ou tremendamente normal.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Da educação

Quando encontramos uma pessoal “mal educada” por aí, normalmente pensamos na falta de educação familiar (também conhecida popularmente como “pai e mãe”). Também é comum, quando conhecemos a família da pessoa em questão (e reconhecemos que a falta não vem dali), que pensemos na educação escolar propriamente dita, e nas possíveis lacunas que essa (má) educação possa ter infligido ao indivíduo mal educado em questão. Às vezes pensamos nas duas coisas, mas raramente pensamos em um “terceiro” fator, que é, do tripé educacional, o mais complexo: o fator cultural. Todos nós conhecemos, afinal, pessoas muito (ou bastante) letradas, educadas em escolas reconhecidas, ou de referência, com famílias também educadas e pais igualmente bem “formados”, que são, sabe lá Deus por que, verdadeiros colossos de ignorância, falta de sensibilidade para com o próximo e civilidade tacanha, se não inexistente. Também não é difícil encontrar o contrário, pessoas que, mesmo sem ter recebido da es...

É isso aí...

O amor é feito de quedas e sustos, de espanto e de silêncios, de trajetórias estranhas e fomes diversas. O amor é feito de cobre. Dura muito, mas muda de cor com o tempo. O amor é feito de pedras aladas, de tristezas ocultas, de sílabas desconexas. O amor é feito de escolhas. Mas algumas dessas escolhas são fatais. Ou fatídicas. O amor às vezes não existe. É feito rio correndo: tem suavidade e orgulho, mas carrega areia e dejetos. O amor também é feito de vento e de geografias. De lutas e reentrâncias. O amor é feito de sede. E de febres.

Não verás país nenhum

Ando por esses dias como há muito tempo não andava. Estou “inquieta, áspera e desesperançada”, como dizia Clarice. “Embora amor dentro de mim eu tenha”. Choro pelos cantos, tento ler coisas leves, mas a noite vem, como um dia veio, e parece que não consegue sair. Choro por um país, por coisas que ainda não aconteceram, mas certamente acontecerão. Choro por sombras bizarras que se instalaram nos espaços de poder e de lá só sairão se as pessoas acordarem. Mas ninguém parece disposto a isso. Todos dormem, embalados por delírios tragicômicos de personagens que, horror nosso, são infelizmente reais. Reais demais. O mundo está real demais. Ou, pelo menos, real demais pra mim. A carga é a mesma de sempre, eu sei: sobra estupidez, ignorância e violência. Só que agora tudo isso não vem embalado na velha roupagem de sempre, de falsa tolerância, mentiras suportáveis e uma certa hipocrisia. Não há mais máscaras, não há mais camadas vagamente civilizadas de retórica ou de auto-controle. ...