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Quase comestível

Não, eu não gosto de cozinhar. No entanto, acho comovente quando os círculos perfeitos e transparentes das cebolas, antes tão acidamente cantantes, são mergulhados no caldo espesso e orgulhoso do azeite, para se bronzear e adormecer no fundo escuro das frigideiras. Adoro o cheiro úmido da hortelã, o violáceo impertinente das beterrabas, a madeira antiga das colheres de pau, mexendo insistentemente as abóboras cor de manhã.

É comovente também o amolecimento vagaroso, mas inexorável, das raízes mais duras e das carnes mais densas sob o poder das chamas. O fogo, enfim, ainda que mecânico e domesticado, ou tornado quase místico sob as pétalas simétricas de um transparente azul, é sempre inebriante comoção.
No entanto, comovem-me ainda mais as vigorosas mãos das cozinheiras, ásperas dos plangentes cortes, do contato diário e fumegante com as violentas texturas da feira: a pele plástica dos tomates; a secura terrosa e vibrante das batatas; o desfolhamento seco e pardo das cebolas; a doçura aveludada das vagens, das folhas de espinafre; a cor apaixonada das cenouras, das beterrabas, dos pimentões. As mãos das cozinheiras, também elas, vão adquirindo, com o tempo, essas texturas indecifráveis, misturas ácidas de corrosão e delicadeza, matizes estranhos de insuspeitáveis carinhos. Escalavradas, adocicadas, lisas de uma luta ávida com intensas temperaturas. E múltiplas durezas.

Amo também as cozinhas, esses altares luxuosos, elásticos, onde cabem, muitas vezes, mesas imensas e caladas, onde sempre se picam legumes, onde frequentemente se amassam massas, onde às vezes se derramam farinhas, feijões e lágrimas. Em torno da mesa, numa dança esquisita, movem-se pessoas de todos os tamanhos e formatos, esperançosas, famintas, alheadas. Loucas por um prato de comida, por um olhar atencioso, por um minuto de amor. Elas giram por ali, sentam-se, olham as panelas fumegantes e os braços veementes do cozinheiro, aguardando sua hora de entrar em cena.

Eu mesma sou assim, adoro ver os outros cozinhar. Isso desde muito pequena, quando, sentada no chão da cozinha, eu acompanhava as peripécias da minha mãe, ainda mais gigante do que o normal, enquanto ela flutuava esvoaçante entre um sem número de misteriosas alquimias. Ela cozinhava; eu conversava sozinha. Mas é dessa primeira sedutora que eu guardo a precisão dos gestos e a beleza hipnótica desse delicado ritual.

Não, eu não gosto de cozinhar. Mas adoro acompanhar todo o processo, desde a preparação inicial da cozinha e escolha do menu até o momento de cortar e descascar, trinchar e escolher, amassar e espremer, cheirar e lamber, sorver e derreter, marcar e temperar, desossar e embrulhar, fritar, assar, mergulhar, escurecer, amaciar, dissolver. Transformar, enfim. E repartir.

Adoro ver a coreografia sensata dos que, muito diferentemente de mim, sabem a hora certa e o momento exato de ligar as chamas, de picar a salsa, de polvilhar as assadeiras, de tampar as panelas. Adoro ver a rota de mapas intermináveis e trajetórias estranhas palmilhadas nos pisos simetricamente cerâmicos. Adoro vê-los bailar em torno dos pratos, salpicando de ervas as aves, seduzindo com molhos as peças de vitela, arrematando com maçãs e uvas os perus assados.

Entre a pia, o fogão, a mesa e a geladeira, entre essas quatro peças do xadrez culinário, nossos cozinheiros movem um exército de peões dedicados, dispostos a tornar o jogo ainda mais carismático. Entre panelas, caçarolas, frigideiras, assadeiras, espátulas, chaleiras, facas, conchas e escumadeiras, entre objetos, enfim, cujos nomes deliciosos parecem prenunciar a esfera magnífica de sons e aromas que eles põem em movimento, os cozinheiros e cozinheiras avançam em sua tarefa imprescindível, indecifrável, miraculosamente comestível: alimentar o mundo!

Circulando agilmente no exíguo espaço das cozinhas, entre ramalhetes de folhas e latas de especiarias, esses seres delicados sobrevivem, esquecidos de todos, perfumados de mil cheiros antigos, urgentes e suaves mosqueteiros de uma batalha sempre perdida, sempre de novo começada, sempre e insistentemente renovada, recozinhada, retemperada em novas receitas, novos matizes e novas misturas: transformar nossa interminável fome em bem aventurança.


Por isso vos digo, e é verdade, os que são, como eu, miseráveis famintos, devem dedicar sua vida a adorar esses deuses mundanos e atarefados, feitos de caldos fantásticos e de voluptuosas sobremesas, de cozidos e de saladas, de veementes recheios e de soberbas especiarias. De fértil substância, enfim. Os iniciados.


Comentários

Anônimo disse…
Oi, achei teu blog pelo google tá bem interessante gostei desse post. Quando der dá uma passada pelo meu blog, é sobre camisetas personalizadas, mostra passo a passo como criar uma camiseta personalizada bem maneira. Se você quiser linkar meu blog no seu eu ficaria agradecido, até mais e sucesso.(If you speak English can see the version in English of the Camiseta Personalizada.If he will be possible add my blog in your blogroll I thankful, bye friend).
sdreF disse…
"As mãos das cozinheiras, também elas, vão adquirindo, com o tempo, essas texturas indecifráveis, misturas ácidas de corrosão e delicadeza, matizes estranhos de insuspeitáveis carinhos. Escalavradas, adocicadas, lisas de uma luta ávida com intensas temperaturas. E múltiplas durezas."


Assim tb o são os corações humanos... Pelo menos o meu coração humano...





PS: Eu não sei fazê-lo assim tão bem, mas adoro cozinhar...
uma cozinha disse…
nossa berreca!!! que lindeza. adorei!!! obrigada e um beijo grande
sil
martina disse…
rebeca!!!
que delícia esse teu blog. adorei teus textos!
:D
beijos
Anônimo disse…
Rebol!!!
Me manda um email! Meu computador deu pane e perdi todos os endereços. Queria te mandar uma mensagem, mas não consigo...
Beijinhos
Careca

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