Para meu pai, em seus 71 anos.
Como nasci e vivi em Recife até os 4 anos, o mar não era exatamente uma novidade pra mim. Todos os dias, alguém (pai, mãe, babá) me levava bem cedo pra dar uma passeadinha pela praia, seja pra brincar entre as poças d´água que se formavam com a maré baixa, seja pra rodopiar por ali por lá por tudo, tarefa infantil das mais importantes e produtivas, como se sabe.
Tudo aquilo era muito bem aprendido com a febre dos meus dois, três anos; um tudo que me faria-faz falta nessa minha vida de montanhas mineiras: areia cantante, ar aberto, barulho de onda e guarda-sol.
Como os três anos não são exatamente altos, e como, na maré baixa, os arrecifes de Recife cuidam de proteger a boa viagem dos que por ali andam, eu só sabia do mar como uma espécie de lago dourado e verde, do seu limite de pedras, esponjosas pedras brilhantes de água e sal e luz.
Nos finais de semana, a praia demorava mais, com direito a ter meu pai mais tempo por perto, fazendo o nada que os adultos fazem enquanto fingem que cuidam das crianças, que por sua vez ficam se ocupando de cuidar bastante deles, bem como do resto do mundo, das pessoas todas.
Num desses demorados sábados, eu, já cansada de tomar conta de todas as coisas que por ali se misturavam, arrisquei pedir, uma vez mais, que meu pai me levasse na pedra. A "pedra" era o arrecife pontudo que nos acolchoava a vista, e que estava sempre povoado de gente, fato que confirmava a possibilidade de que também nós lá pudéssemos nos meter. Eu pedia sempre. Ele negava sempre. De preguiça, decerto, ou de puro conhecimento do que lá havia. Eu, que nada conhecia, julgava que havia ali alguma coisa. E não errava.
Naquele dia, ele topou. Me pôs no colo de banda, que é o jeito certo de carregar menino na água, e se pôs em movimento.
Eu, que adorava entrar no mar com ele, exultei mais uma vez, de puro prazer antecipado. E, um par de passos depois, entrávamos os dois na morna arrebentação, que nos levaria, uma vez mais, ao íntimo salino e espesso do mundo.
Embriagada de felicidade, eu já havia esquecido por completo o objetivo da aventura. E cuidava de ter muito medo, só pra lembrar que meu pai me segurava, e era forte. E que nada me aconteceria jamais. O mar puxava muitíssimo, ou pelo menos eu assim o pensava, mas nós resistíamos bravamente, enxarcados de água e sal. Água alga e sal. Água areia e sal.
E ondas. Enfrentávamos também a desarmonia balançante das ondas, que além de encompridar a viagem, nos brindava com súbitas explosões aquáticas. Depois de cada uma delas, além de cabelos e olhos molhados, ganhávamos tempo pra avançar mais, e uma recolhida alegria, que só quem ganhou onda no rosto conhece.
Alguns banhos e engolidas de água depois, e agora já com alguma dificuldade, eu e meu pai alcançamos a pedra, e ali nos equilibramos, mal e mal. E fomos subindo cambaleantes por ali, para o que ele me indicou ser o "outro lado". Ainda hoje, quando me indicam um (outro) caminho ou um (outro) modo de ver por esse sugestivo pronome, fico muda de expectante vertigem, pois meu primeiro "outro" foi muito mais do que um susto, foi mesmo quase uma devastação.
Do outro lado do recife, eu vi pela primeira vez um mundo intenso e terrível, banhado e liberado por sua própria grandeza, explodindo forte e espumante nas pedras, cortando o espaço subitamente voável do ar. O vento ventava tanto, o mar era tão grande e grave e o céu vibrava tão sem nuvens que tudo só podia ser violentamente meu. E era.
Vivi destampadas fronteiras.
E derepentemente, eu estava mesmo era muito sozinha, os olhos abertos sedentos. A água espumava sob meus pés, o surdo do peito cantava, dominado por distâncias tormentosas. O espaço crescia suas gravidades todas, embalado pelas terras de longe - tão tão sozinhas quanto eu. Tão tão pequenas.
Eu, toda olhos e susto, peguei na mão do meu pai, ou ele pegou da minha, e pude assim aguentar essa suave violência do mundo, que eu só então conhecia.
Acho que ele entendeu minha aflição, e apressou-sem em explicar que, lá do outro lado - que eu não podia ver, mas que existia muito - havia tantas outras pessoas e mundos, países, territórios, estradas - astros, noites, tempestades. Tudo assim como aqui, ele disse, só que você não pode ver.
Aquilo me acalmou um pouco. A terra se arredondava pra mim. O mar grande e pequeno. Uma nova história começando.
Sem saber, meu pai me deu naquele dia dois presentes, que ainda trago comigo embrulhados.
Um, foi o tamanho do medo. Espaço liso sem medida que o comova. Reverberações.
Outro, foi o conforto do amor. Que vive de traçar mapas e fazer sentido. O medo ficando menor.
Dividido.
Comentários
Compartilho desse seu amor-quase-lusitano pelo mar, por imensidões, pa(i)trias e o gosto salgado da saudade... Que delícia ler esse conto! Obrigada pelo presente, vc é uma tágide!
que texto mais lindo! quase te vi menorzinha, ainda, no colo do seu pai, na beira do mar... lindo demais. beijo grande da Ná
Onde o que está lavado se relava
Para o rito do espanto e do começo
Onde sou a mim mesma devolvida
Em sal, espuma e concha regressada
À praia inicial de minha vida"
sophia de mello breyner
Paulo, esse poema foi mais que um presente...Fiquei renovada!
Que delícia de texto! Me levou, em ondas, até meu primeiro contato com Galeano. Divido com você 'A Função da Arte', muito conhecido, mas de tão belo, vale o registro:
"Diego nao conhecia o mar. Seu pai, Santiago Kovadloff, levou Diego para descobri-lo. Viajaram ao sul.
Ele, o mar, estava pra lá das altas dunas, esperando.
Quando o menino e seu pai alcançaram por fim aqueles picos de areia, depois de muito caminhar, o mar estalou diante de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando por fim conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu a ele:
- Pai, me ajuda a olhar!
Beijos muitos (mando mais escrivinhanças pra vc inda hoje!)
Bjs!
é incrível como o mar é uma presença forte, né? eu tenho essas recordações da minha vó, que me deixava entrar na água no inverno, de blusão e tudo, num frio de rachar.
esse tá lindo demais.
que amor.
que delícia.
Beijo pra vc
Carla (a pianista, viu?)
Abraços
Martina, sua avó, pelo visto, era uma figura "da porra", como se diz no nordeste... : )
Cris, Marcela e Nalu, obrigada pelos elogios... estava querendo escrever esse texto faz tempo, ele ainda não saiu como eu queria, mas pelo menos já está "encaminhado", como diz meu pai...
E Carla, que bom que vc tem voltado e gostado dos textos! Precisamos fazer outro encontro daquele, né? Saudade de vcs...
to cá lendo seu email e preciso de um folêgo pra te responder!
beijocas querida!
Val
Morei em Recife até os 14 anos e convivi com o mar assim como vc citou e o nosso passeio em família no fim de semana era ir à praia. E a festa era maior, quando meu pai resolvi que iria levar eu e minha irmã na praia das pedras - que era como chamávamos aquela região da praia de Boa Viagem onde tem os arrecifes.
Obrigada por lembrar-me da minha infância.
Tia Jú,
Fico feliz por ter provocado lembranças tão boas! Pra mim,essa época foi muito boa, mas eu não lembro de quase nada... rsrsrsrs!
"praia das pedras"... é isso mesmo, acho que meu pai já tinha me falado isso e eu tinha esquecido...
Beijos conterrâneos,
R.