Imagino-os vencidos, observando o tempo que passa. Acompanhando o degradar inóspito das paredes escuras. O cheiro sufocado dos objetos que não têm mais serventia. Eles se desenham no meu espírito, continuadamente. Quando chego em casa. Quando saio. Quando vou colocar o lixo pra fora. Ou receber o gás. Quatro portas puramente fechadas. À espera de quê?
E eles, imóveis, esperam.
Não é interessante, penso eu, que um apartamento seja logo ocupado por novos donos. Também os espaços de cimento precisam cumprir seu luto. Ficar um tempo vazios. Desossados.
É necessário que as paredes sofram seus quadros perdidos, seu hálito. É preciso esperar que as janelas empenem e escureçam, que os azulejos se soltem, que os beirais se deteriorem.
É muito importante que o piso, cada vez mais empoeirado e melancólico, vá apagando da própria memória os rastros da vida que ali sofreu e pisou, descalça, trôpega, feérica, úmida de amor e alegria, tímida ou grave, seca de desespero. Passos de pavor e impermanência.
Aos poucos e docemente, os soluços e gestos de ternura do antigo morador vão restando esquecidos, emaranhados nos fios de cobre, nas vidraças quebradas, nos canos enferrujados.
Toda uma afetuosa intimidade irá perder consistência, subsumida sob camadas e camadas de pó. O modo como a janela recortava um lago de luz no quarto da frente e era motivo de tão sincera alegria. A vista da varanda, fotografada sempre em dias de chuva. O piso fresco entre o sofá e a tv, varrido antes da novela para receber as almofadas. O lugar do gato sobre o guarda-roupa, limpo às sextas-feiras e mesmo assim sempre encardido. A marca do butijão na cerâmica da cozinha, causa de tantas irritações e devaneios proféticos. O refúgio de silêncio da copa, ocupado ao amanhecer pelas formigas. O marco descascado à espera da carícia desavisada. A hora secreta dos sábados, quando se masturbava nos lençóis recém trocados. A fechadura enguiçada, o varal sentimental, o ralo sempre sujo.
Tudo isso, desde a agitação dos pés esperando a marmita até o suspiro resignado do cigarro diário, tudo isso deve ser esquecido aos poucos pelo apartamento vazio, desbotado, escoado gota a gota, absorvido pela acumulação sincopada dos dias, pela nem sempre súbita aventura da noite. Hora após hora, muito devagar.
Até quando? Até que a lembrança daquele sorriso tão familiar não fira tanto as paredes, agora nuas; até que as portas consigam ficar de novo abertas sem sofrer tanto; até que a pintura encardida possa encarar de frente uma demão de esperança; até que os gonzos da janela admitam abrir-se para outros olhares, outros rostos, outros dilemas.
E escrever outras histórias.
Comentários
O luto tem seu tempo mesmo... de ficar e de partir... como todos nós.
Espero que vc esteja melhor... se não, envio todo o meu carinho pra vc! Beijos!
Mas que vida eh essa que voce tira da morte? Que coisa mais linda, isto aqui. Segui um link da Cris Guerra e vim rolando, rolando, vendo tuas coisas...
Boa surpresa prum domingo, meio de feriado.
Um beijo grande,
Silmara Franco
www.fiodameada.wordpress.com
Mas que vida eh essa que voce tira da morte? Que coisa mais linda, isto aqui. Segui um link da Cris Guerra e vim rolando, rolando, vendo tuas coisas...
Boa surpresa prum domingo, meio de feriado.
Um beijo grande,
Silmara Franco
www.fiodameada.wordpress.com
Que bom que gostou! Fico muito feliz! Muito mesmo! Volte sempre, viu? Vou lá no seu blog te visitar tb. Bjos!
Yes! "Vou voltar... sei que vou voltar..." Que nem em "Sabiá", do Chico Buarque.
Isso! Aparece no meu blog, sim. Vou ficar feliz igual você.
Beijos,
Silmara
Do Chico e do Tom Jobim.