Um amigo me escreveu contando de alguns "problemas literários" que ele julgava importantes...
1) A busca do Livro Absoluto Borgiano (um livro que diria tudo o que todos os outros querem dizer). O mesmo vale para o Voyage d'hiver de Perec.
2) O grande problema de shakespeare de Otelo... a traição ou não.... o mesmo também seria o problema de Machado de Assis, Capitu o traiu ou não?
3) Bataille, Clarice Lispector, Lacan e a busca do 'a'.
4) Freud e o inconsciente?
5) Kakfa e a metamorfose e o processo (o que seria a metamorfose? que culpa teria Josef K)?
6) A busca da Poesia de Drummond e Rilke....
Daí me empolguei a enumerar os meus:
- O PROBLEMA DO AUTOR – a “escrita”, melhor dizendo, a narrativa, a arte de contar histórias, começa coletiva, depois se “pessoaliza”, se personaliza, torna-se exclusiva de um nome. Mais recentemente, a profunda valorização desses “nomes”, dessas autorias, que foi empreendida ao longo de décadas, começa a ser questionada até sua dissolução, ou até seu desdobramento em outras questões, como a “morte do autor” (ver Barthes), a solidão da escrita (Blanchot), escritas coletivas (Kafka e sua “Josefina – a cantora dos ratos”), etc.
- A QUESTÃO DO VALOR: o que torna um texto “melhor”, ou “pior”, do que outro? A questão se desdobra na literariedade do literário, e mesmo na problemática hierarquia entre os gêneros (poesia é melhor que prosa? - muitos defenderam que sim...). A questão alimentou boa parte dos estudos literários ao longo dos tempos, continua alimentando, mas eu ainda penso como Derrida e Foucault: entre dois textos, só há diferenças puras, as hierarquias produzidas por essas diferenças são “historicamente produzidas”, sempre a partir de interesses (políticos) específicos, de determinados grupos...Durante muito tempo, por exemplo, o problema da UTILIDADE da literatura, ou das artes, incomodou os pensadores. Como valorizamos o útil, passamos a perguntar se a literatura era útil, e pra quê. Essa questão diz muito respeito a nós (críticos literários), que volta e meia sofremos por trabalhar com algo considerado inútil, menor, inferior - sem VALOR.
- A QUESTÃO DO LEITOR (OU DA LEITURA): Até que ponto o leitor “compreende” tudo o que o autor quis transmitir? Até que ponto uma comunicação real, ou perfeita, se efetiva? É possível mesmo transmitir algo, ou toda transmissão sempre estará condicionada ao receptor, às suas linguagens, expectativas, códigos, etc.? A questão da existência (e mesmo da possibilidade) de uma leitura fiel, ou correta, ou “melhor”, aí se instala, reforçando os problemas da segunda e da primeira questão (o leitor também escreve, toda escrita é no mínimo dupla). Essas questões se aprofundam (e se multiplicam) com a psicanálise e seus problemas específicos.
- A QUESTÃO DA REPRESENTAÇÃO. Questão posta em evidência por Platão, na sua clássica expulsão dos poetas da sua República, bem como no paradigma dos três leitos. O poeta não representa as coisas como elas “são”, e por isso está menos próximo da “verdade” do que o filósofo. Essa afirmação fundou e justificou os problemas relativos à segunda questão, ao longo do tempo, mas muitos escritores e poetas fizeram questão de trabalhar em cima da representação da impossibilidade de representação – Clarice, V. Woolf, Joyce, etc. Trabalharam com o impossível, portanto.
- A partir da questão 4, uma outra se evidencia, A QUESTÃO DA FICÇÃO, com seus problemas específicos: até onde o ficcional se torna verdade, até onde a verdade é ficção, etc. O problema foi parar lá na história, e relativizou o papel do historiador, aproximando-o do ficcionista. Verdade e ilusão se aproximaram na teoria, coisa que já faziam há muito tempo na prática literária (vide Odisséia, Dom Quixote, etc.). Essa questão é um desdobramento da questão da representação(4), e ajuda a reforçar o problema da literariedade(2): o que é mais literário: tentar representar o mundo fielmente, ou abusar da imaginação e da fantasia?
- A questão da leitura (3) desemboca em uma outra: a questão da recuperação das fontes, O PROBLEMA DA CRIAÇÃO, enfim. Quais são as origens do texto, como ele é construído, como é feito, como é posto em movimento, etc. É possível recuperar isso, pelo texto, pela leitura, ou pelo contexto biográfico-psíquico que cerca o autor? Nessa aí podemos evocar todas as outras questões. E ela desemboca na questão da
- RESPOSTA do AUTOR: até onde o autor deve responder ao que perguntamos a ele? Seja em termos de origem da sua criação, de verdade acerca de suas proposições, de fundamento em suas histórias? Até onde ele deve corresponder, seja na obra ou na vida, aos códigos morais que outras épocas históricas impõem? Biografia e literatura aí se mesclam mostrando, mais do que qualquer outra coisa, nossos desejos: porque queremos que Machado responda se Capitu traiu ou não, sendo que a história é contada do ponto de vista do suposto traído? Porque não damos conta de não-saber? Porque perguntamos, a determinados livros e autores, o que ELES quiseram dizer? Porque não inventamos, nós mesmos, as respostas? Aliás, não é isso que viemos fazendo desde sempre?
E vocês, o que acham? Aguardo novas listas...
Comentários
MSRL
Muito interessante. Adorei.
Lembrei-me de Quintana.
Beijos, alegrias e poesias,
Daniel.
O TRÁGICO DILEMA
Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.
Mario Quintana (Caderno H)
C., creio que aqui vc achou alguns, não? rsrsrsrs!
E Dani, o Quintana foi no ponto crucial da coisa, na minha humilde opinião. O que o autor quis dizer não importa tanto quanto o que o leitor quis ler... mas essa discussão vai longe...