Encerrar o ano é um recurso muito útil. Todos sabem disso. Há todo um investimento coletivo no sentido de empacotar a memória dos doze meses anteriores, em envelopes bem datados e bem lacrados, e de preparar um ritual cuidadoso de despedida. Afinal, todo espetáculo tem fim. É preciso fechar as cortinas, apagar as luzes e sair de cena. É preciso dobrar os panos, encaixotar as fantasias e tirar a maquiagem. É urgente trancar as portas e deixar tudo pra trás.
Pra poder seguir em frente.
Uma frente, todos nós sabemos, que é mesmo o meio do mundo. O meio do tempo. O meio de um espaço todo bagunçado, que não tem começo nem fim. Que não tem bordas, que não tem saída nem entrada, que não tem sentido. Mas que continua.
Todos sabemos disso, mas isso não chega a ser um problema, porque ninguém quer saber disso. O futuro foi por todos nós traçado e por todos nós será escrito. Ele vai sempre pra frente. Inapelavelmente.
O futuro sou eu e você. O futuro é a nova peça que começa. Já com algumas linhas mestras traçadas. Já com alguns finais meio prontos e uma boa dose de humor e tragédia. É assim.
Um futuro escrito por todos nós. Dramas mexicanos. Novelas brasileiras. Vilões e vilãs parecidos, mas com nomes diferentes. Mais frios e calculistas do que nunca. E cada vez mais bonitos. Novos filmes de arte. Outras e diferentes roupas. Novos cenários. Velhas estratégias. Antiqüíssimos preconceitos.
Crises econômicas novas, mas com o mesmo sabor amargo no fundo. Somos todos culpados. Materialistas, pequeno-burgueses, sedentários, hipócritas, falsamente religiosos, genuinamente fiéis. Fiéis de nós mesmos. Entupindo as artérias, os shoppings, as caixas de e-mails, as igrejas, as salas de espera. Esperando por nós mesmos.
Esperando pela nova peça que já vai começar.
E que tem algumas linhas e quase que todo o enredo já pronto. É só preencher os espaços vazios, é só preencher os canhotos dos cheques, as filas do banco, do supermercado, do cinema. É só ocupar um lugar. Na fila ou fora dela. No estacionamento ou na sarjeta. No mercado de trabalho ou na lista de aprovados.
Está quase tudo pronto. O resto é bem fácil de fazer. É só cozinhar em forno brando, com uma pitada de sal. O sal é sempre a gosto. O gosto determina o final. O gosto determina a moda e a vitrine. O valor e o presente. O nacional e o universal. O gosto determina a fome e a sede. O que manda e o que recebe. Bom gosto, bom senso, temperança, temperos suaves, boa vizinhança. Caldo de galinha ou remédio tarja preta.
Mas o neutro está lá. Insuportavelmente insosso. Ora, mas ninguém quer saber dele. Ele não importa.
O que não tem nome, o que não ocupa espaço, o que não é nem doce nem salgado, o que não tem utilidade. Nada disso importa. A peça precisa começar.
Novos personagens, cenários conhecidos e velhos tipos urbanos são convocados. O bêbado e o equilibrista. O político em cima do muro e os muros de concreto armado.
E muros de outros tipos. Tão diversos. Muros de fome e de linguagem. Gente que não sabe falar francês. Gente que não sabe que passeio no Sena é cafona. Gente que nem liga pro fato de passear no Sena ser cafona. Gente que brilha e que morre de fome. Ou de overdose. Muros de purpurina e de celofane. Muros de sal e de açúcar. Muros de coca e de anfetamina. Cada um no seu quadrado. Ou elipse. Muros.
Novos personagens. Mitos antigos. Aquiles e seu calcanhar. Velhas atrizes e o medo de envelhecer. Penélope, Ulisses e suas tantas artimanhas pra não sucumbir. Novas pílulas e velhos exercícios para emagrecer. David e Golias. Nós e nossos espelhos.
Muros são recursos úteis. Muros de tempo. Ano passado. Esse ano. Ano retrasado. Ano que vem. Muros entre um fracasso e outro. Entre um sucesso e outro. Entre uma religião e outra. Entre um deus e outro. Entre um amor e outro. Muros de solicitude e de solidão. Muros de esperança também: não vai haver mais muros! Muros de ilusão.
A ilusão é um recurso utilíssimo. Imprescindível. É preciso fingir que o cenário não é de papel. É preciso imaginar que o ator não está viciado, que ele não é gay, que ele é pai de família, tem três filhos e talvez uma amante. Velhas histórias. Velhos vilões. É preciso contar com os vilões certos. Um para cada muro. Um para cada religião. Um para cada forme. Um para cada regime.
É preciso contar com os heróis também. Com os mocinhos e com as mocinhas. Eles nos falam de nossos muros. De nossos espelhos. Eles nos confirmam e nos arrebatam. Eles nos preenchem e perpetuam. Eles nos salvam do quadrado alheio. Da cafonice alheia. Da elipse alheia. Da miséria alheia. Da riqueza alheia.
Eles nos salvam de uma vida sem final feliz. De uma vida sem final trágico. Eles nos salvam de uma vida sem final. Eles não deixam as teorias ficarem sem conclusão ou os problemas sem solução. Heróis são sempre úteis. Imprescindíveis. Eles e suas espadas. Elas e suas lágrimas.
Violência e martírio. Elementos que não podem faltar na nossa peça cotidiana. No nosso dia-a-dia, no nosso copo de água. Muros de dor e sacrifício. E culpa. Velhos personagens. Novas histórias. Jesus e seu sangue permanentemente derramado. Brigas de bar. Tiroteios. Antígonas e Medéias entupindo os presídios. Estatísticas. Histórias de sucesso. Vilões e mocinhos. Casais apaixonados. Sexos diferentes, por favor.
Violência e martírio. Amor e sexo. Paixão e Glória. E de vez em quando uma grande descoberta científica. Traições. Separações. Novos encontros. Pontes.
Sim. De vez em quando. Entre os muros. Uma ou outra ponte. Entre os quadrados e elipses. Entre um soluço e outro. Entre uma culpa e outra. Entre um amor e outro. Pontes.
Pontes entre mulheres e homens. Pontes efêmeras. Sempre efêmeras demais. Impermanentes, indóceis, impróprias, quase inúteis. Mas ainda assim, pontes.
Entre eu e você. Entre você e seus muros. Entre eu e meus heróis de placebo. Entre nós dois, nós duas, nós três, nós mil, nós muitos. Pontes de fé e de silêncio. Pontes para diminuir nossa culpa e a dos outros. Pontes para o pequeno detalhe. Pontes para a beleza inútil, inabordável. Passageira. Pontes para a poesia sem retorno, para a história sem sentido, para o sorriso sem motivo. Para a árvore que ninguém vê no meio do trânsito. Pontes para o neutro, para o sem sal ou doce. Ou marca. Para o sem gosto. Pontes para o outro gosto. O ainda não provado. O recusado. O já fora do prazo de validade. O já fora de moda. Pontes para o lado de fora. Para o meio do caminho, para o meio da rua, para o meio do mundo. Pontes entre as histórias. Entre as memórias. Entre os sentidos. Pontes entre as peças. Entre os móveis. Entre os medos.
Pontes efêmeras. Sempre efêmeras demais. Impermanentes, indóceis, impróprias, quase inúteis. Mas ainda assim, pontes.
Pontes para o presente. Pontes para o milagre que não é depois. É agora. Entre o amanhã e o ontem. Entre esse ano e o próximo. Entre eu e você. Entre os muros. Agora.
Hora de atravessar.
Pra poder seguir em frente.
Uma frente, todos nós sabemos, que é mesmo o meio do mundo. O meio do tempo. O meio de um espaço todo bagunçado, que não tem começo nem fim. Que não tem bordas, que não tem saída nem entrada, que não tem sentido. Mas que continua.
Todos sabemos disso, mas isso não chega a ser um problema, porque ninguém quer saber disso. O futuro foi por todos nós traçado e por todos nós será escrito. Ele vai sempre pra frente. Inapelavelmente.
O futuro sou eu e você. O futuro é a nova peça que começa. Já com algumas linhas mestras traçadas. Já com alguns finais meio prontos e uma boa dose de humor e tragédia. É assim.
Um futuro escrito por todos nós. Dramas mexicanos. Novelas brasileiras. Vilões e vilãs parecidos, mas com nomes diferentes. Mais frios e calculistas do que nunca. E cada vez mais bonitos. Novos filmes de arte. Outras e diferentes roupas. Novos cenários. Velhas estratégias. Antiqüíssimos preconceitos.
Crises econômicas novas, mas com o mesmo sabor amargo no fundo. Somos todos culpados. Materialistas, pequeno-burgueses, sedentários, hipócritas, falsamente religiosos, genuinamente fiéis. Fiéis de nós mesmos. Entupindo as artérias, os shoppings, as caixas de e-mails, as igrejas, as salas de espera. Esperando por nós mesmos.
Esperando pela nova peça que já vai começar.
E que tem algumas linhas e quase que todo o enredo já pronto. É só preencher os espaços vazios, é só preencher os canhotos dos cheques, as filas do banco, do supermercado, do cinema. É só ocupar um lugar. Na fila ou fora dela. No estacionamento ou na sarjeta. No mercado de trabalho ou na lista de aprovados.
Está quase tudo pronto. O resto é bem fácil de fazer. É só cozinhar em forno brando, com uma pitada de sal. O sal é sempre a gosto. O gosto determina o final. O gosto determina a moda e a vitrine. O valor e o presente. O nacional e o universal. O gosto determina a fome e a sede. O que manda e o que recebe. Bom gosto, bom senso, temperança, temperos suaves, boa vizinhança. Caldo de galinha ou remédio tarja preta.
Mas o neutro está lá. Insuportavelmente insosso. Ora, mas ninguém quer saber dele. Ele não importa.
O que não tem nome, o que não ocupa espaço, o que não é nem doce nem salgado, o que não tem utilidade. Nada disso importa. A peça precisa começar.
Novos personagens, cenários conhecidos e velhos tipos urbanos são convocados. O bêbado e o equilibrista. O político em cima do muro e os muros de concreto armado.
E muros de outros tipos. Tão diversos. Muros de fome e de linguagem. Gente que não sabe falar francês. Gente que não sabe que passeio no Sena é cafona. Gente que nem liga pro fato de passear no Sena ser cafona. Gente que brilha e que morre de fome. Ou de overdose. Muros de purpurina e de celofane. Muros de sal e de açúcar. Muros de coca e de anfetamina. Cada um no seu quadrado. Ou elipse. Muros.
Novos personagens. Mitos antigos. Aquiles e seu calcanhar. Velhas atrizes e o medo de envelhecer. Penélope, Ulisses e suas tantas artimanhas pra não sucumbir. Novas pílulas e velhos exercícios para emagrecer. David e Golias. Nós e nossos espelhos.
Muros são recursos úteis. Muros de tempo. Ano passado. Esse ano. Ano retrasado. Ano que vem. Muros entre um fracasso e outro. Entre um sucesso e outro. Entre uma religião e outra. Entre um deus e outro. Entre um amor e outro. Muros de solicitude e de solidão. Muros de esperança também: não vai haver mais muros! Muros de ilusão.
A ilusão é um recurso utilíssimo. Imprescindível. É preciso fingir que o cenário não é de papel. É preciso imaginar que o ator não está viciado, que ele não é gay, que ele é pai de família, tem três filhos e talvez uma amante. Velhas histórias. Velhos vilões. É preciso contar com os vilões certos. Um para cada muro. Um para cada religião. Um para cada forme. Um para cada regime.
É preciso contar com os heróis também. Com os mocinhos e com as mocinhas. Eles nos falam de nossos muros. De nossos espelhos. Eles nos confirmam e nos arrebatam. Eles nos preenchem e perpetuam. Eles nos salvam do quadrado alheio. Da cafonice alheia. Da elipse alheia. Da miséria alheia. Da riqueza alheia.
Eles nos salvam de uma vida sem final feliz. De uma vida sem final trágico. Eles nos salvam de uma vida sem final. Eles não deixam as teorias ficarem sem conclusão ou os problemas sem solução. Heróis são sempre úteis. Imprescindíveis. Eles e suas espadas. Elas e suas lágrimas.
Violência e martírio. Elementos que não podem faltar na nossa peça cotidiana. No nosso dia-a-dia, no nosso copo de água. Muros de dor e sacrifício. E culpa. Velhos personagens. Novas histórias. Jesus e seu sangue permanentemente derramado. Brigas de bar. Tiroteios. Antígonas e Medéias entupindo os presídios. Estatísticas. Histórias de sucesso. Vilões e mocinhos. Casais apaixonados. Sexos diferentes, por favor.
Violência e martírio. Amor e sexo. Paixão e Glória. E de vez em quando uma grande descoberta científica. Traições. Separações. Novos encontros. Pontes.
Sim. De vez em quando. Entre os muros. Uma ou outra ponte. Entre os quadrados e elipses. Entre um soluço e outro. Entre uma culpa e outra. Entre um amor e outro. Pontes.
Pontes entre mulheres e homens. Pontes efêmeras. Sempre efêmeras demais. Impermanentes, indóceis, impróprias, quase inúteis. Mas ainda assim, pontes.
Entre eu e você. Entre você e seus muros. Entre eu e meus heróis de placebo. Entre nós dois, nós duas, nós três, nós mil, nós muitos. Pontes de fé e de silêncio. Pontes para diminuir nossa culpa e a dos outros. Pontes para o pequeno detalhe. Pontes para a beleza inútil, inabordável. Passageira. Pontes para a poesia sem retorno, para a história sem sentido, para o sorriso sem motivo. Para a árvore que ninguém vê no meio do trânsito. Pontes para o neutro, para o sem sal ou doce. Ou marca. Para o sem gosto. Pontes para o outro gosto. O ainda não provado. O recusado. O já fora do prazo de validade. O já fora de moda. Pontes para o lado de fora. Para o meio do caminho, para o meio da rua, para o meio do mundo. Pontes entre as histórias. Entre as memórias. Entre os sentidos. Pontes entre as peças. Entre os móveis. Entre os medos.
Pontes efêmeras. Sempre efêmeras demais. Impermanentes, indóceis, impróprias, quase inúteis. Mas ainda assim, pontes.
Pontes para o presente. Pontes para o milagre que não é depois. É agora. Entre o amanhã e o ontem. Entre esse ano e o próximo. Entre eu e você. Entre os muros. Agora.
Hora de atravessar.
Comentários
Beijos e abraço
Clau
abraços e bjos
esdras/aurélio
Estúdio dos Duplos
E Clau, obrigada pelos votos!!! Eu sinceramente espero isso também! Para todos nós!
Esdras, milimetricamente eu não sei, mas o plano é bem preparado... ainda bem que temos o acaso pra ajudar a bagunçar um pouco as coisas... rsrsrrs!
Beijos!
desejo pra você muitos risos, corações acelerados, alguns amores e também uns temores, porque você sabe, é assim.
obrigada por ter dito, que bom ter achado.
De nada... rsrsrs! eu que agradeço sua visita! E seu elogio!