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Pas-de-Deux

- Sempre quis escrever um diálogo...
- E por que não escreve?
- Só consigo conversar comigo mesmo.
- E daí?! Escreve isso, então.
- Conversar consigo mesmo não é diálogo.
- É sim.
- Não acho, não. Num diálogo, é bom que se vejam as diferenças entre as pessoas. Os modos de impasse.
- Pois é, mas você mesmo não é assim tão coeso que não haja partes de você que não possam brigar umas com as outras.
- Não é brigar.
- Tá, dialogar.
- Mas eu ainda não entendi como eu poderia fazer isso...
- Ok, tipo assim, uma parte de você ama, a outra não sabe se é aquilo mesmo, uma parte ode...
- Isso é muito manjado.
- E qual é o problema?
- Eu queria fazer um diálogo mais criativo, sabe? Uma conversa que ninguém teve com ninguém. Uma conversa entre dois seres que jamais poderiam se comunicar.
- E você acha que isso não existe em você?
- Dois seres que não se comunicam?
- É.
- Não sei, eu teria que pensar mais a respeito.
-Viu?!!!
- Vi o quê?
- Isso que você falou!
- O quê?
- Ué, se você vai pensar mais a respeito, significa que uma parte de você acha que sim, e a outra acha que não. Pensar, nesse caso, significa que elas vão conversar entre si e a que argumentar melhor vai ganhar. O sim ou o não.
- Sim e não o quê?
- Gente, isso que você acabou de dizer. Uma parte acha que existem em você partes de você que não se comunicam com uma, ou com outras, das partes desse mesmo você. Mas existe uma parte de você que se reconhece como inteira e como não tendo partes, mesmo que admita conversar, ainda que hipoteticamente, com uma parte que ela mesma julga que não existe, para provar a essa parte que não existe que ela realmente não existe.
- Você tá doido?
- Não, foi o que você falou.
- Você foi que falou. O que eu falei foi só que eu só consigo conversar comigo mesmo.
- Então, conversar consigo mesmo PROVA que o diálogo interno é possível.
- Mas aí não é um diálogo, é um monólogo.
- Monólogos não existem, só existem diálogos. Os monólogos são diálogos disfarçados. Muitos elementos diferentes ficam conversando como se fizessem parte de um mesmo time, mas não fazem, fazem parte de times muito diferentes.
- Mas se eles ficam fingindo que são do mesmo time, acabam sendo, não? E aí vira um monólogo mesmo. Eu acho que essa coisa do time aí que você falou, ela é como se fosse o eu central, um eu que comanda os outros, e como são todos filhos de um mesmo eu que comanda, não podem ter idéias diferentes, ainda que eles pensem que sim. No fundo, o eu central acaba levando todas as diferenças superficiais a uma mesma unidade, mais convincente. O diálogo interno nunca existiu, porque a pessoa não pode sair de suas próprias determinações internas que, o nome já diz, o determinam internamente.
- Quem finge, sabe que está fingindo. Mesmo que o eu interno, como você falou, ache que está no comando, ficam existindo muitas dissidências sob o tapete, e um dia elas tomam o poder.
- Não estamos falando de um país, criatura, mas de uma pessoa.
- Toda pessoa é como se fosse um país.
- Isso é ridículo.
- Não é não... eu acho que tem até pessoas no meu país, por exemplo, que eu nem conheço, pessoas que estão por vir.
- Estão por vir? Como assim? Como uma espécie de messias?
- Que messias nada, pessoas mesmo. Elas não trazem nada, não vão mudar muito, vão só existir.
- E daí?
- Daí que o "poder" desse eu central nunca será totalmente soberano, entende? Se existir alguém, no passado ou no futuro, que não acredite nele, ainda que seja só um, ele não será mais soberano.
- E então?
- Daí que isso PROVA que o monólogo não existe.
- Nada disso. Isso só prova que os sistemas totalitários não são tão totalitários assim, só isso.
- Só isso?! Isso é tudo! Se um sistema totalitário qualquer, ainda que seja um monólogo, for questionado em seu princípio de totalidade, ele perde a força.
- Perde nada. Se houver só um que não concorda, de nada adianta. Por exemplo, se eu tiver um "eu mesmo" que não concorda com os outros "eu mesmos" que existem em mim, ele nunca vai ganhar um debate, ele vai ser sempre minoria.
- Pode ser, mas vai ser como um calo no pé, vai incomodar. E vai questionar, por princípio, a própria totalidade do grupo.
- Então, ele vai acabar sendo eliminado pelo grupo e tudo voltará a ser como antes.
- Não volta seu bobo, porque existe o futuro.
- Que futuro, gente?
- O que eu disse antes, lembra? Se houver a possibilidade de que alguém, no futuro, venha de novo questionar essa totalidade, ela deixa de ser totalidade de novo. A simples possibilidade de que isso aconteça já acaba com o sistema. E acaba com ele agora, não no futuro.
- Acaba com a idéia, não com ele próprio.
- Mas a idéia, o tal calo no pé, ainda que depois de extirpado, continua a existir pela sua memória. Todos vão saber que, um dia, o calo do pé existiu. Todos vão se lembrar que existem outras possibilidades. E podem até desejar que isso aconteça.
- Lembram por uns tempos, depois se esquecem de novo. E tudo volta ao normal. E o eu soberano fica mandando em tudo de novo. E ficamos felizes e contentes.
- Mais ou menos.
- Como mais ou menos?
- Mesmo que os seus eus se esqueçam POR COMPLETO que o eu diferente tenha um dia existido e sido eliminado, ainda assim existe a possibilidade de que ele volte a aparecer.
- Por isso é que temos que ficar de olho.
- Ficar de olho em quê?
- Em todos os eus. Para ver se algum deles está querendo ser diferente.
- Isso é ridículo. É totalmente paranóico.
- Antes ser paranóico que esquizofrênico.
- Pode ser, mas os meus eus se divertem muito mais.
- Porquê?
- Porque eles conversam entre si. Brigam, se reconciliam...
- Conversam nada...
- Conversam sim.
- Não conversam!
- Quer ver só como eles conversam?
- Quero sim, pode vir!
- Pensando bem, alguns deles estão aqui achando que não vale a pena brigar com você.
- E os outros?
- Que outros?
- Os que querem brigar. Chama eles.
- Não posso.
- Porquê?
- Eles saíram pra comprar cerveja.

Comentários

marcela dantés disse…
bom demais.
eu vivo conversando comigo.
marcela dantés disse…
bom demais.
eu vivo conversando comigo.
Anônimo disse…
Ai, Rebecca, isso tá bom demais. Uma mistura de Woody Allen com Platão. Mentira. Uma mistura de Rebecca com ela mesma (partes diferentes, claro; diálogo, diálogo).
Anônimo disse…
Adorei o texto, isso acontece o tempo todo conosco,como se o anjinho e o diabinho estive dialogando...rs rs rs
Agora uma pergunta... você trouxe este texto da Rebeccalândia?
Unknown disse…
Acho que tá mais pra mistura de Rebecca com Rebecca do que de Platão com o Woody... amo os dois, inclusive, o woody mais que o platão...

E dri, acho que o texto veio de rebecalândia mesmo... rsrsrs!

Beijo pra todas!
Lilian Glaisse disse…
fiquei com medo dos meus "eus" agora! haha eles devem ser louquinhos assim

maravilhosos teus textos!
Unknown disse…
Balzaquiana! Vc voltou mesmo, heim?! Que bom!

Lilian, fique com medo não... quanto mais louquinhos, melhor... rsrsrs! Bjos!

E Glauce... Que dia vc vem por aqui, dona?! Estamos todos com saudades!
Nina disse…
Ahaha, fiquei vendo eu mesma nessa discussão aí.. me vejo hj igual a minha avó, falando sozinha. Quem vê, pensa que tô maluca, e de vez em quando saem as malucas tbm pra pegar um cerveja e parar um pouco com a discussão.

olha, vou te linkar no meu bloguinho tá? posso?
Unknown disse…
Pode sim, nina!

Vou já já no seu blog te dar um oi também!

Bjos!
martina disse…
hehehe.
acho que vou mandar todos os meus eus pra mesa do buteco.
;)
muito bom, muito bom!!!

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