Pular para o conteúdo principal

Outro Ulisses e Outro Polifemo

Não. Não era esse o plano. No entanto, àquela altura, já não havia mais nada a fazer. A não ser esperar. O pai viria, era certo. Uma hora ou outra. Era melhor esperar. Claro que a posição não ajudava em nada. Era duro ficar de cócoras, agachado por detrás daquele empilhado de tijolos, defendendo um lugar de apoiar com a força do corpo. A visão que tinha da casa, aliás, também era péssima. Tinha que ficar todo atento aos barulhos, para não estragar tudo de vez. Mas o pior, o pior mesmo, era manter o equilíbrio.
Sentia que aquela pobreza muscular, aquela fadiga toda concentrada, estavam armadas contra a vontade dele. E tinha raiva. Muita raiva mesmo. Contra os panos duros da calça, contra o embotamento vagaroso das pernas – obrigadas a ficar naquela posição de merda - contra o tempo-todo da espera, contra o frio, contra sua própria idéia de resolver ficar ali. Contra tudo. Ia já começando a ter preguiça, a desistir, a amolecer a vingança sob as águas do sensato, do suor razoável. Tudo era tão difícil. Era melhor ir dormir e desistir de tudo aquilo. Era melhor.
Mas aos poucos, também, o atrito da raiva ia fazendo seu trabalho contrário. O de soldá-lo àquela posição meio grave, meio decadente, meio desesperada. O tempo agudo ia passando, longo e amolecido. E ele, ainda mais longo e retesado, grudava os pés na poeira grossa da terra e ia demolindo o sono dos ossos com o fogo demorado da lembrança.
Para manter os dedos no muro e o olho no terreiro, só precisava se lembrar da fome de morte que tinha. E da faca boa que trazia. Só precisava remoer a desordem interna das lembranças pra motivar de novo o empreendimento da vingança. Agora continuada. E, aos poucos, de memória em memória, de lembrança em lembrança, ia fazendo o ódio subir de novo nele feito formiga em tacho de doce, no devagar-e-sempre das coisas que são fatais. Era fácil. Era só não esquecer.
Não esquecendo. Se desovasse de novo os desmandos do pai no seu lombo, se revivesse o fisgar do milho nos joelhos, se cravasse no amargor das humilhações a besta fera dos gritos - era fácil odiar. De novo e de novo. Para sempre. A coisa subia que sufocava, fazia cócegas na garganta, afirmava o travo dos dentes, o franzido dos beiços em fúria. Odiava.

Porque o ódio, esse desconhecido, precisa às vezes ser um pouco inventado, um pouco cultivado, pra germinar mais firme, mais duro. Precisa ser também regado e alimentado e, em muitas ocasiões, podado e contido, pra ficar maior na estação seguinte, no ano seguinte, na década seguinte, quando estivermos mais fortes para o golpe.

No entanto, ao contrário do que se pensa, essa planta macilenta e daninha não é nada forte. O ódio, esse desconhecido, vibra limpo só uma vez. Depois, a lembrança tem que agir rápido e sempre, protegendo da morte esse momento frágil e intenso, essa semente maldita, esse espasmo. Todos os dias, é preciso verter águas de raiva límpida, diminuir o sol de outras paixões cotidianas, de outras memórias, principalmente das boas, adubar bem a terra do corpo, fechar os punhos, franzir os olhos, forçar a náusea. Ficar sempre lembrando, lembrando, lembrando.
Todos os dias. Lembrando do monstro que o pai sempre fora. Sim, porque Ulisses só conseguia lembrar das coisas que pudessem fazê-lo reviver aqueles momentos brutos. Com o tempo, o exercício do ódio acumulado, como juros compostos, nublava qualquer outra lembrança, boa ou pouco má. Só sobrava aquela, que à força de muito esforço, ainda mordia nele feito fome. A única lembrança possível.
A única lembrança. Aquele olho cego, o outro olhando. O estômago doendo, embrulhado, quando o pai o mandava fazer aquilo. O tempo demorando a passar, o enjôo grande demorando a chegar. Quando ele chegava, junto com o vomitado escuro e viciado, Ulisses ficava salvo. Quando a náusea vinha com força, ele desmaiava completo, para logo ser acordado aos tapas e repuxões. Quando ela vinha com força, ele conseguia fazer parar aquele pinto do pai.

Ele chamava o vômito, enchendo a boca, buscando crescer a garganta, aprendendo a revolver-se por dentro. Mas nem sempre ela vinha. A náusea grande. Ficando só a pequena, desforra do pai, que o comia então dobrado. Aquele filho da puta.

Não esquecendo. O pai chegando, como chegava muitas vezes, meio curvado, meio tropeçando na escada bruta, torta. Meio torto. Não esquecendo. O pai olhando com seu olho único o terreiro enorme, antes de entrar em casa. O pai batendo na mãe. Com as costas da mão. Com a correia. Com a colher de pau. O pai sempre. O pai de novo. O pai, o pai, o pai. Não esquecendo para sempre aquela cara torta, aquele olhar ausente de um olho só. O outro fechado cego por conta de uma briga de rua. Aquela pele turva e espessa. Cheia de poros imensos. Cheia de pêlos bravos por toda parte. Aquelas mãos de lixa pegando no seu pinto de menino, fino e leve como uma bexiguinha murcha. Puxando, raspando. Mãos imensas, desdobradas, cheias de unhas. E como fedia, o pai. Meu Deus, como fedia aquele homem. O saco azedo e nebuloso, encardido, frouxo. O pinto sempre pegajoso, tantas veias esquisitas, tão miseravelmente grande, cheirando a mijo e peixe. Podre e quente.
Meu Deus. Meu Deu, lá vem ele. É, só pode ser agora. O pai chegando, meio curvado, meio tropeçando na escada morta, meio torto, meio sôfrego. O cheiro nauseante de vinho barato. O olho cego franzido. O olho restante empapuçado, sombrio, embriagado.

A hora do golpe. Último olhar esquivo, última conferida no terreiro, última passada perto da pilha de tijolos, última tropeçada perto do filho. Última. E para sempre. Para sempre o fino fio frio daquela lâmina crescendo, perto da boca. Dentro da garganta, peito, barriga, barriga, barriga. Zap! A fúria crescendo.
Uma duas três. Doze, quinze, ufa! O pai perto da terra, o mundo perto do medo. A fúria. O balanço do ódio escaldante de Ulisses tremendo na boca, a faca tremendo na mão, o pai tremendo de morte. Daquele desafogar de tudo o que era ruim nele. Vai puto! Morre! Tudo o que sofreu virando combustível, virando sangue ensopando a terra, virando vento cada vez mais rápido em vela enfunada. Virando os olhos, o pai. Revirando os braços ao redor do corpo, parecendo cada vez mais o monstro que sempre fora.
Tudo vermelho. E o filho da puta sangrando até morrer junto à pilha sedenta de tijolos, lambendo no pêlo da terra a morte mais matada de todas: a de faca. Engolia em sangue de guerra aquele caralho podre que ele vivia colocando nos lugares errados, sangrando por todos os lados sua selvageria medonha, sua finada valentia. Seu veneno viscoso empapando a terra, feito chuva, feito alívio, feito vingança mesmo. Ainda morna. Continuando.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Como fazer seu amor amar você em 12 lições...

Foto de MicroAbi 1: Roube umas estrelas pra ele. Amores amam estrelas. 2: Quando for entregar as estrelas, não se esqueça de embrulhá-las em papel de seda azul. O dourado delas vai ficar todo encantado. 3: Quando for suspirar, prenda a respiração por 7 segundos exatos. E envie durante esses 7 segundos 7 trilhões de saudades para o coração delicado do seu amor. 4: Quando acordar, feche os olhos do sonho com um beijo de boa noite. Sempre funciona. 5: Ande de olhos fechados pelo território do segredo. Se você não resistir e abri-los, finja que não é com você. 6: Quando for dormir, cumprimente seus sonhos entusiasticamente. Afinal, são eles os responsáveis pela movimentação inteira da terra em torno do seu amor. 7: Leve sempre pão e vinho para seu amor. Não o deixe perecer por falta de alento. Nem por falta de alegrias. 8: Toque seu amor com dedos de orvalho e de tempestade. A luminescência convém com a paixão. 9: Ao olhar para ele, cubra-o de calafrios. A pele é sempre nova para suavidad...

A menina e o mar

Para meu pai, em seus 71 anos. Como nasci e vivi em Recife até os 4 anos, o mar não era exatamente uma novidade pra mim. Todos os dias, alguém (pai, mãe, babá) me levava bem cedo pra dar uma passeadinha pela praia, seja pra brincar entre as poças d´água que se formavam com a maré baixa, seja pra rodopiar por ali por lá por tudo, tarefa infantil das mais importantes e produtivas, como se sabe. Tudo aquilo era muito bem aprendido com a febre dos meus dois, três anos; um tudo que me faria-faz falta nessa minha vida de montanhas mineiras: areia cantante, ar aberto, barulho de onda e guarda-sol. Como os três anos não são exatamente altos, e como, na maré baixa, os arrecifes de Recife cuidam de proteger a boa viagem dos que por ali andam, eu só sabia do mar como uma espécie de lago dourado e verde, do seu limite de pedras, esponjosas pedras brilhantes de água e sal e luz. Nos finais de semana, a praia demorava mais, com direito a ter meu pai mais tempo por perto, fazendo o nada que os adulto...

Montes Claros

Há coisas que não se explicam. Como um modo de amar o passado. Umas ruas empoeiradas. Uma praça, umas igrejas e duas escolas. Minha casa. Há coisas que não se explicam. Como um modo de amar uma cidade. Uma cidade que não pude enfrentar por 11 anos. Como um modo de silenciosamente dizer: Mãe, eu não pude mais voltar. Mas voltei. Caminhei tudo de novo. Refiz todos os meus passos. Um por um. Primeiro, a escola. Dei a aula que tinha que dar, na mesma escola que me abrigou dos 10 aos 16 anos. A aula foi longa, e nela couberam infinitas coisas. A primeira aula de literatura, claro. E o primeiro amor. O espaço breve e intemperante de cada uma das salas de aula. E os corredores de cimento. Os bancos onde crescíamos, tontos de mundo. E a dor de pertencer. Os discursos alados. Os discursos perdidos. Olhos e vozes esquecidas, perdidas no desdobrado ensandecido do tempo. A aula foi longa, e nela couberam tantas coisas. Todas elas inexplicáveis. Todas elas urgentes. Da urgência doce e melodi...