Onze anos e um mês. Talvez doze anos. Sim, foi quando sua voz começou a se despedir do mundo. E também você. Teus olhos foram os últimos a ir. Para onde? Para onde.
Onze, doze anos. Enquanto isso, fui ficando mais forte. Vês, já não sou a mesma, pareço-me cada vez mais contigo. Sim, mãe, tenho ficado um pouco mais firme, mas não mais triste. Fico, na verdade, cada vez mais alegre, mais nitidamente alegre, de uma alegria fina e suave, feita de muitos e tímidos devaneios. É claro que eu gostaria que você estivesse por aqui, vendo tudo isso, reclamando de tudo isso, talvez mesmo duvidando de tudo isso. Mas você não está. Então, vou vivendo assim, meio enviesada, meio trôpega, meio sem armas, mas sempre feliz, porque sei que é isso o que você gostaria que eu fizesse. Ficasse feliz. Então eu fico.
Fico feliz quando, todos os dias, passo pela mesma árvore. Intensa e magnífica, recortando o céu, tornando mais leve e dócil o ar, engrossando a terra cansada da praça. A árvore. Ela me lembra você. Seus dedos, suas mãos brancas, nervosas, alheias às páginas que iram virando, embevecidas com o mundo urgente dos livros. Tão separadas de mim, já então.
Fico também feliz quando, todos os dias, vejo as pessoas atarefadas nas ruas, tomando ônibus e táxis, encostadas nos balcões das lanchonetes, atravessando violentas a rua, tomando sorvete, comprando pão e roupas. Elas também se parecem com você, com seu vigoroso estilo, tão diferente do meu. O mundo, como você o foi, me parece rápido e delirante, cheio de mistérios, de bordas ocultas, urgentes. Sempre correndo para algum lugar. Todo colorido, áspero, muitas vezes feio, o mundo me incomoda um pouco.
Você também às vezes me incomodava, sua distância, sua beleza melancólica. Seus olhos. Ainda carrego comigo a ironia deles, a malícia, a desprendida alegria do mundo, nublada tantas vezes por uma pesada e insuportável dor do mundo. Seu sentido trágico, duro, implacável, que ainda hoje me preenche e contamina. E pasme, mesmo essa melancolia me alegra, quando a encontro pela vida, escondida nas histórias tristes, nas paredes por pintar, na amiga que morreu tão jovem, nas flores que murcham cedo demais, nos desejos pantanosos, na noite insone, na marcha fúnebre, nunca mais ouvida, e que você me ajudou a compreender, e a amar.
Onze, doze anos. Enquanto isso, fui ficando mais forte. Vês, já não sou a mesma, pareço-me cada vez mais contigo. Sim, mãe, tenho ficado um pouco mais firme, mas não mais triste. Fico, na verdade, cada vez mais alegre, mais nitidamente alegre, de uma alegria fina e suave, feita de muitos e tímidos devaneios. É claro que eu gostaria que você estivesse por aqui, vendo tudo isso, reclamando de tudo isso, talvez mesmo duvidando de tudo isso. Mas você não está. Então, vou vivendo assim, meio enviesada, meio trôpega, meio sem armas, mas sempre feliz, porque sei que é isso o que você gostaria que eu fizesse. Ficasse feliz. Então eu fico.
Fico feliz quando, todos os dias, passo pela mesma árvore. Intensa e magnífica, recortando o céu, tornando mais leve e dócil o ar, engrossando a terra cansada da praça. A árvore. Ela me lembra você. Seus dedos, suas mãos brancas, nervosas, alheias às páginas que iram virando, embevecidas com o mundo urgente dos livros. Tão separadas de mim, já então.
Fico também feliz quando, todos os dias, vejo as pessoas atarefadas nas ruas, tomando ônibus e táxis, encostadas nos balcões das lanchonetes, atravessando violentas a rua, tomando sorvete, comprando pão e roupas. Elas também se parecem com você, com seu vigoroso estilo, tão diferente do meu. O mundo, como você o foi, me parece rápido e delirante, cheio de mistérios, de bordas ocultas, urgentes. Sempre correndo para algum lugar. Todo colorido, áspero, muitas vezes feio, o mundo me incomoda um pouco.
Você também às vezes me incomodava, sua distância, sua beleza melancólica. Seus olhos. Ainda carrego comigo a ironia deles, a malícia, a desprendida alegria do mundo, nublada tantas vezes por uma pesada e insuportável dor do mundo. Seu sentido trágico, duro, implacável, que ainda hoje me preenche e contamina. E pasme, mesmo essa melancolia me alegra, quando a encontro pela vida, escondida nas histórias tristes, nas paredes por pintar, na amiga que morreu tão jovem, nas flores que murcham cedo demais, nos desejos pantanosos, na noite insone, na marcha fúnebre, nunca mais ouvida, e que você me ajudou a compreender, e a amar.
Fico feliz também quando encontro o amor. Amor múltiplo e desobrigado dos meus amigos, tão doces, tão generosos todos. Amor dedicado e suave do meu amor: sua tranqüila e firme delicadeza. Amor inóspito e vertiginoso do mundo, desdobrando-se urgente em um cotidiano de sutis revelações: imagens deliciosas, versos febris ou apenas desconcertantes, histórias terríveis e estranhas, gritos e sussurros, poemas sujos, ladrões de bicicleta, vacas profanas, genis e seus zepelins. E, claro, Diadorim, Macabéa, Ema Bovary, Philip Carey, Aires, Joana, Akáki Akákievitch, Gregor Samsa, Riobaldo, Jane Eyre, Miguilim, Orlando, Ponciano de Azeredo Furtado, Capitu, Clarissa Daloway, e tantos outros. Que me acompanham, sempre. Tal como você, minha personagem predileta.
Sim, mãe, meu cotidiano é vasto e delicioso. Escrevo, ouço silêncios, aguardo o crescimento das plantas. E quando elas estão floridas, mãe, tudo parece ainda maior e mais livre. Também aguardo meu crescimento, e o das pessoas à minha volta. E quando elas estão floridas, mãe, o mundo inteiro vibra com a suavidade desse colorido. O mundo inteiro e eu, adornados de flores. Minhas e alheias. Flores de sofreguidão e mistério. Flores de loucura e descompasso. Flores de amor grande, desobrigado. Flores de misericórdia. Flores de profundo perdão.
Bem sei, mãe, como elas são raras. E viver é um pouco esperar que elas brotem. Mas elas nascem sim, Ah! se nascem. E nosso encantado mundo respira, respira, respira.
Sabe, mãe, apesar de tudo, eu cresci. Fiquei mais nítida, mais destacada. Sou pequena e suave, mas muito forte. Ainda tenho em mim todas as dores do mundo. Mas choro menos. Aprendi: há sempre um descompasso. Uma alma que fere, outra que sofre. Há amor de menos e sistemas demais. Há verdades sonoras, que convencem multidões, mas separam os pais de seus filhos. Há violinos que plangem, sem ninguém para ouvi-los. Há cobiça e tirania e decepção. E o ódio campeia sem tréguas. Mas, apesar de tudo, continuamos. Continuamos porque não há outro meio, e esse meio é a nossa vertigem. A nossa história.
Sim, mãe, meu cotidiano é vasto e delicioso. Escrevo, ouço silêncios, aguardo o crescimento das plantas. E quando elas estão floridas, mãe, tudo parece ainda maior e mais livre. Também aguardo meu crescimento, e o das pessoas à minha volta. E quando elas estão floridas, mãe, o mundo inteiro vibra com a suavidade desse colorido. O mundo inteiro e eu, adornados de flores. Minhas e alheias. Flores de sofreguidão e mistério. Flores de loucura e descompasso. Flores de amor grande, desobrigado. Flores de misericórdia. Flores de profundo perdão.
Bem sei, mãe, como elas são raras. E viver é um pouco esperar que elas brotem. Mas elas nascem sim, Ah! se nascem. E nosso encantado mundo respira, respira, respira.
Sabe, mãe, apesar de tudo, eu cresci. Fiquei mais nítida, mais destacada. Sou pequena e suave, mas muito forte. Ainda tenho em mim todas as dores do mundo. Mas choro menos. Aprendi: há sempre um descompasso. Uma alma que fere, outra que sofre. Há amor de menos e sistemas demais. Há verdades sonoras, que convencem multidões, mas separam os pais de seus filhos. Há violinos que plangem, sem ninguém para ouvi-los. Há cobiça e tirania e decepção. E o ódio campeia sem tréguas. Mas, apesar de tudo, continuamos. Continuamos porque não há outro meio, e esse meio é a nossa vertigem. A nossa história.
Quero que saibas, mãe, que seu trabalho não se perdeu. Suas histórias estão todas aqui. Teus olhos azuis pousados nos meus, suas impacientes respostas às minhas perguntas sem freio. Suas lições também estão comigo, mãe, tatuadas na pele dos ossos, na colméia do peito, na velocidade dos olhos: experimentar de tudo; amar sem reservas; tentar sempre de novo; olhar para o outro lado; desconfiar muito das palavras, mas viver da sua falsa inocência.
Com você, aprendi: tudo o que existe são histórias. Todas as histórias foram, um dia, inventadas. Mas só algumas histórias têm fim.
Com você, aprendi: tudo o que existe são histórias. Todas as histórias foram, um dia, inventadas. Mas só algumas histórias têm fim.
Comentários
Beijinhos!
Lindo!
E procure alternar as publicações, entre prosas e poemas. Você tem facilidade com ambos, então, melhor mesmo é manter o exercício.
E já adotei seu blog como leitura.
O meu blog, em http://www.clubeletras.net/blog eu uso para observações pessoais de coisas da internet, da política, de cultura geral.
O site principal, fica em http://www.clubeletras.net, que é por onde desenvolvo o ativismo cultural literário.
Já temos várias tecnologias socioculturais desenvolvidas e todas voltadas para o hábito da leitura e usando como base, a literatura de texto curtos de autores ainda anônimos.
Beijos!
Sérgio
PS: Sempre que publicar algo, lembre-se de mandar uma avisinho, ok?
Estava ansiosa aguardando pelas suas postagens.
Beijos!!!!!!
Lindo! intenso e profundo.
"Tatuado na pele dos ossos","desconfiar muito das palavras" ... tantas coisas ditas, sentidas, marcadas, mais ditas! não sou doutoura em literatura alias dra. em nada, mais gosto das coisas ditas com o coração e a razão,as lagrimas vieram aos olhos ao mesmo tempo em que sentia em seu texto um "ir buscar la dentro" que se misturava... enfim desculpe nao sei se me fiz entender, mais quero realmente dizer que entendi e que achei lindo e com certeza você aprendeu muito com ela, onde esteja tenho certeza que é muito orgulhosa desta filha encantadora.