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Sábado de Aleluia

Uma vez fechado o portão, veio a grande alegria. Estava sozinha.
Voltou lentamente para dentro, respirando com delícia, já destacada de si. Viu-se, ao longo dos dias e das noites seguintes, podendo fazer o que bem entendesse. Viu-se estendida no quintal, olhando o céu por horas a fio, não se importando com a comida ou com os deveres de casa. Viu-se afundando as mãos na terra seca, sentindo os cheiros todos do mundo, que crescia e se multiplicava, enquanto contava e recontava cada uma das vibrantes ondas de luz que por ali serpenteavam. Viu-se inteira e solta, livre para ficar quase três horas no banho, sentada no chão do box, deixando a água cair nas costas como uma cachoeira pacífica e determinada, enquanto se ocupava em desenhar com o xampu quadros efêmeros e impressionantes nos azulejos esverdeados. Viu-se lambendo a panela do bolo, que faria com o pote inteiro de Nescau, sem ter que dividir o prazer com irmão nenhum. Aliás, viu-se sem irmão nenhum, enfiada nos quartos deles, brincando com seus brinquedos de menino, voando pela casa de espada em punho, perseguindo o cachorro, quebrando os galhos das árvores e gritando enlouquecidamente.

Diante desses prazeres todos, ainda imaginários, subiu ainda mais lentamente a escada, estalando de sol e vertigem. Parava em cada degrau e equilibrava-se, meio debruçada, no descascado corrimão de ferro, observando vagarosamente o jardim que aos poucos se afastava, poeirento e rasteiro, enquanto ela era puxada para cima por seres mutantes e descabelados, que insistiam em levá-la para uma das luas de Urano. Será que Urano tem lua?! Bom, isso não importa agora, preciso resistir a esse chamado, cuidar da casa é minha missão periférica nesse momento, não posso me deixar levar assim sem luta... Enquanto lutava, as mãos agarrando o ferro escaldante, os pés esvoaçando no ar, aproveitava para dar um tempo ali fora. Afinal, ela não era boba nem nada e os pais podiam esquecer alguma coisa e voltar. Se assim fosse, ela ainda não estaria gritando feito uma louca pelo quintal, nem muito menos com o som na maior altura. Era preciso agir moderadamente, portanto. Pelo menos por enquanto.

Depois de vencer os marcianos, expectante, já no topo da escada, a mão na maçaneta da porta, ela esperava que passassem os minutos de praxe enquanto mirava, do alto do seu posto, o céu sem nuvens de junho, miraculoso céu de inverno mineiro, que trazia com ele, além dos azuis mais mirabolantes do mundo, o aniversário da avó distante. Como a dita cuja não gostava muito dela (“preguiça” que era recíproca, aliás), nem do pai, acabou conseguindo, depois de várias investidas fracassadas, convencer a mãe a visitá-la sozinha. Os gêmeos iam com o pai para a pescaria e ela, que já era quase uma mocinha, ficava tomando conta da casa. Aquele era o terceiro ano do seu reinado. Já estava, por isso, experiente no planejamento dos prazeres e na divisão meticulosa dos brinquedos ao longo daqueles imensos três dias.

Quando os famigerados 15 minutos se passaram, ela invadiu a casa como um tufão, de arma em punho, pronta para subjugar todo o exército inimigo de um só golpe. Rendam-se, móveis malditos, vocês estão em D-E-S-V-A-N-T-A-G-E-M! Minhas potentes armas irão transformá-los em pó e plástico F-E-D-O-R-E-N-T-O se vocês insistirem em resistir! É melhor capitular! EU VOS ASSEGURO! Nada escapa dos meus poderes fantásticos! NADA! Sendo meus súditos, vocês terão muito mais benefícios e alegrias! Eu sou uma rainha generosa, quando quero, E saberei tratar muito bem de todos vocês! ISSO! ISSO! Juntem-se a mim! Faremos uma festa de três dias e três noites para celebrar essa vitória! A MINHA, A DE VOCÊS, A DO MUNDO INTEIRO!

Depois de alguma confusão inicial, os móveis e eletrodomésticos decidiram, por unanimidade, que iriam aceitar a nova líder. Com a condição de que, claro, ela não ousasse meter a mão neles. Eles sabiam se limpar sozinhos, ora essa, não era preciso se preocupar. Houve alguma resistência por parte dos brinquedos dos irmãos, uma vez que ficou estabelecido que eles iriam para a frente de batalha. Mas, depois de algumas ameaças mais veementes por parte dos seus enviados especiais, os livros-de-filosofia-e-português-capazes-de-convencer-qualquer-um-de-qualquer-coisa, os brinquedos masculinos finalmente aderiram à nova chefe, e trataram de cuidar eles mesmos dos preparativos para o grande banquete de coroação.

Então, ajudada pelos novos integrantes do seu reino, ela começou por atacar os armários do pai e da mãe. Depois, muitíssimo bem vestida para a cerimônia, ainda que meio trôpega por causa dos saltos e um pouco sufocada com as quinze gravatas, ela desceu gloriosamente a escadaria principal e foi ovacionada por todos os súditos presentes (os do País-da-Sala-de-Estar), bem como reverenciada pelo mestre de cerimônias O Cachorro, que corria desvairado ao som dos Stones, que brotava retumbante de todas as caixas de som.

Depois do Banquete Real, composto de duas pizzas e vários refrigerantes misturados com um restinho de cidra e muito chantily, ela se jogou no Planeta-Sofá, disposta a conferir a “programação-especial-da-tarde-de-sábado”: todas as revistas pornôs do pai. Estas últimas, uma vez que se viram livres de seu cativeiro semi-perpétuo, o fundo falso do armário de roupas, prometeram, em agradecimento, mostrar-lhe o funcionamento de algumas das fabulosas armas-secretas do mundo adulto: seios bem mais bonitos do que os da mãe, pintos bem maiores do que os dos irmãos, que, apesar de gêmeos, tinham, cada um, um pintinho diferente, cabelos por toda parte, posições esdrúxulas, brinquedos esquisitos, piadas divertidas, entrevistas picantes (fosse lá o que isso significasse); história que era bom mesmo não tinha muito não, mas tudo bem.

A expedição foi longa e laboriosa. Ela percorreu, como sempre fazia quando estava só, os mais inusitados e impressionantes territórios. Alguns já conseguiam que ela suspirasse de aflição. Outros, muito desconhecidos, pareciam até engraçados, senão ridículos. De qualquer maneira, ajudavam a entender muitas coisas, ocultas nas novelas e nos livros de romance, nas frases ambíguas dos pais e dos amigos dos pais. Pedaços de um mundo que ela começava a querer devorar. Era um pouco parecido com decifrar fórmulas secretas. Só que essas traziam um tal formigamento de corpo que dava até vontade de dançar.

E foi o que ela fez. Até as três da manhã. Com todas as luzes acesas.

Comentários

Anônimo disse…
adoreeeeeeeeeeeeeei!
Beijos,
Dani Gusmão.
Rebecca M. disse…
Obrigada, Dani!

O texto estava com uns errinhos, mas já consertei.

Bjo!
Anônimo disse…
Rebecca,
põe uma foto no seu perfil... pra gente que esta longe de você... Assim, cada vez que a saudade bater a gente olha a foto, relê os textos e pensa como seria bom nos encontrarmos.
Beijos e muito sucesso. (algumas palavras não têm acento... teclado francês...)
Anapaula.
Rebecca M. disse…
Taí, nipow...

Não está lá essas coisas, mas só tenho essa. Vou ver se arranjo outras dps...

Bjo saudoso!
Micha disse…
Oioi, você deixou comentário no meu blog e resolvi passar aqui pra visitar. ADOREI! Voltarei sempre! Bjinhos, Micha.
http://nosofadamicha.zip.net

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