"... Ele é o empregado discreto
Ela engoma o seu colarinho
Vão viver sob o mesmo teto
Até explodir o ninho..."
[O casamento dos pequenos burgueses - Chico Buarque - 1977/78]
Todos os dias, às 10 e 45, de flanela em punho, ela coordenava os últimos retoques da empreitada matinal de todos os dias: a meticulosa e vasta arrumação da casa. Depois de limpos todos os quartos e arrumados todos os banheiros, depois de devidamente alimentadas de água e adubo todas as plantas, depois de afofados os travesseiros e guardados todos os objetos que haviam saído de seus lugares, depois de trocadas as toalhas e depois de eliminados os traços de lixo de todas as lixeiras, depois de capturadas as roupas já secas no varal (coisa que ela acabara de fazer), depois de tudo isso, então, às 11 e 55, com o cesto de roupas em uma das mãos, ela atravessava o quintal imenso.
Saía de trás dos lençóis coloridos estendidos no varal como de trás das cortinas de um grande teatro. Suspirava, com uma das mãos sobre o peito, e erguia os olhos para a casa. Ou melhor, para os fundos da casa. A sua casa. Toda ela limpa e clara e bem cuidada. A casa com suas janelas de madeira verde, com suas jardineiras suspensas, derramando flores e trepadeiras por todos os cantos. A casa era linda e alta e jovem. Iluminada. Como ela mesma o era. Linda, alta e jovem. Do alto dos seus 22 anos, ela considerava tudo o que tinha, e o sol imenso das quase 11 horas avisava o início da principal hora do dia. A hora larga do almoço.
Das 11 às 3, terminados os trabalhos cotidianos mais urgentes, ela podia reinar quase absoluta no seu templo doméstico. A empregada obedecia solene aos seus coordenados comandos de maestrina, e atacava os instrumentos culinários com a mesma desenvoltura de uma orquestra bem ensaiada. Às 11 em ponto, a panela de pressão já anunciava com vigor o feijão preto, preferido do marido, e inundava de vapor e ritmo o altar suntuoso do Grande e Misericordioso Fogão de Seis Bocas, aquele honorável mestre devorador de grãos duros, aquele insaciável criador de carnes macias, massas cantantes e leguminosas perfumadas, as voluptuosas filhas da sua fúria transformista. Coisas de guru delicado.
Às 11 e 45, o marido vinha, dócil e faminto como um súdito subserviente, largava-se no amplo sofá e esperava a deixa para invadir a mesa. Ela se sentava junto dele, altiva e benevolente, pegava nas suas aquelas mãos, beijava-as, como uma deusa beija um mártir. Suavemente.
Meio dia em ponto, começava o show. Todos os dias, ela guiava seu melhor discípulo para a singela cerimônia diária. Ávidos e urgentes, eles se sentavam à mesa. Invadidos pelo intenso colorido dos cozidos e assados, amolecidos pelo perfume do vinho e das flores, seus corpos rapidamente entravam em um torpor de ritual. A discreta e perfeita ordem dos pratos, a singela organização dos talheres, a música no fundo, a luminosidade da sala, tudo fazia parte do generoso espetáculo – o almoço burguês.
Em pouco tempo, todos os movimentos, sorrisos, comentários e gestos eram apenas a parte visível de uma furiosa e ardente celebração cósmica, quase mística, quase inapelável: eles eram melhores que os outros, e nada podia mudar isso.
1 e 15, saciados e vencidos, os dois repousavam na varanda e respiravam o envolvente descanso das áreas sombreadas. O café preto acordava lentamente o corpo inerte, que aos poucos aceitava uma palavra ou outra. O sol saía lentamente do seu ponto máximo, a tarde começava, modorrenta e grave.
Mas era só lá pelas 3 que ela - quando o marido enfim voltava para a repartição, quando as últimas luzes do espetáculo iam enfim sendo desligadas, quando o cenário ia sendo lentamente desmontando e encaixotado, quando as oferendas que sobravam recolhiam-se ao obeso túmulo do refrigerador, ou ao fértil abismo das lixeiras, quando os lençóis lá fora estalavam de secos, quando tudo, enfim, ficava real e ardia -, era só lá pelas 3 que ela, a sacerdotisa, podia finalmente descansar.
...
E até hoje, anos e anos passados, ela matuta ainda, do alto longilíneo e sólido dos seus 63 anos, com uma dúvida antiga: o que terá sido mais difícil? prover o pão, como o marido fazia... ou, como ela, tomar conta do circo?
Saía de trás dos lençóis coloridos estendidos no varal como de trás das cortinas de um grande teatro. Suspirava, com uma das mãos sobre o peito, e erguia os olhos para a casa. Ou melhor, para os fundos da casa. A sua casa. Toda ela limpa e clara e bem cuidada. A casa com suas janelas de madeira verde, com suas jardineiras suspensas, derramando flores e trepadeiras por todos os cantos. A casa era linda e alta e jovem. Iluminada. Como ela mesma o era. Linda, alta e jovem. Do alto dos seus 22 anos, ela considerava tudo o que tinha, e o sol imenso das quase 11 horas avisava o início da principal hora do dia. A hora larga do almoço.
Das 11 às 3, terminados os trabalhos cotidianos mais urgentes, ela podia reinar quase absoluta no seu templo doméstico. A empregada obedecia solene aos seus coordenados comandos de maestrina, e atacava os instrumentos culinários com a mesma desenvoltura de uma orquestra bem ensaiada. Às 11 em ponto, a panela de pressão já anunciava com vigor o feijão preto, preferido do marido, e inundava de vapor e ritmo o altar suntuoso do Grande e Misericordioso Fogão de Seis Bocas, aquele honorável mestre devorador de grãos duros, aquele insaciável criador de carnes macias, massas cantantes e leguminosas perfumadas, as voluptuosas filhas da sua fúria transformista. Coisas de guru delicado.
Às 11 e 45, o marido vinha, dócil e faminto como um súdito subserviente, largava-se no amplo sofá e esperava a deixa para invadir a mesa. Ela se sentava junto dele, altiva e benevolente, pegava nas suas aquelas mãos, beijava-as, como uma deusa beija um mártir. Suavemente.
Meio dia em ponto, começava o show. Todos os dias, ela guiava seu melhor discípulo para a singela cerimônia diária. Ávidos e urgentes, eles se sentavam à mesa. Invadidos pelo intenso colorido dos cozidos e assados, amolecidos pelo perfume do vinho e das flores, seus corpos rapidamente entravam em um torpor de ritual. A discreta e perfeita ordem dos pratos, a singela organização dos talheres, a música no fundo, a luminosidade da sala, tudo fazia parte do generoso espetáculo – o almoço burguês.
Em pouco tempo, todos os movimentos, sorrisos, comentários e gestos eram apenas a parte visível de uma furiosa e ardente celebração cósmica, quase mística, quase inapelável: eles eram melhores que os outros, e nada podia mudar isso.
1 e 15, saciados e vencidos, os dois repousavam na varanda e respiravam o envolvente descanso das áreas sombreadas. O café preto acordava lentamente o corpo inerte, que aos poucos aceitava uma palavra ou outra. O sol saía lentamente do seu ponto máximo, a tarde começava, modorrenta e grave.
Mas era só lá pelas 3 que ela - quando o marido enfim voltava para a repartição, quando as últimas luzes do espetáculo iam enfim sendo desligadas, quando o cenário ia sendo lentamente desmontando e encaixotado, quando as oferendas que sobravam recolhiam-se ao obeso túmulo do refrigerador, ou ao fértil abismo das lixeiras, quando os lençóis lá fora estalavam de secos, quando tudo, enfim, ficava real e ardia -, era só lá pelas 3 que ela, a sacerdotisa, podia finalmente descansar.
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E até hoje, anos e anos passados, ela matuta ainda, do alto longilíneo e sólido dos seus 63 anos, com uma dúvida antiga: o que terá sido mais difícil? prover o pão, como o marido fazia... ou, como ela, tomar conta do circo?
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